Iminente 2021: a cultura sabe ocupar e habitar a cidade

por Tiago Mendes,    10 Outubro, 2021
Iminente 2021: a cultura sabe ocupar e habitar a cidade
Festival Iminente. Foto de Sofia Rodrigues / CCA
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É um dos festivais que mais gozo nos dá visitar na programação artística da área metropolitana de Lisboa, anualmente: o Iminente está de volta depois de em 2020 ter sido forçado a não se realizar. E mudou de casa, cumprindo a sua natureza desde que nasceu em 2016, não permanecendo mais de duas edições seguidas na mesma localização da cidade. Desta feita ocupa a Matinha, antiga zona industrial de Marvila que se encontra na iminência de ser reconvertida e reconfigurada como novo centro urbano e cultural da cidade.

Como em todas as edições, o festival Iminente ocupa o espaço com mestria e um olhar extremamente criativo sobre a arquitectura — temos a sensação, ao entrar e passearmo-nos no interior do recinto, que pisamos lugares desconhecidos, inabitados, e agora inventados: uma utopia de futuro que por uma noite temos a oportunidade de ajudar a construir.

Dino D’Santiago e Branko. Foto de Sofia Rodrigues / CCA

O festival abarca a missão de ser um lugar de celebração da cultura urbana, a uma escala lata, abarcando as artes visuais, o skate, performances, um uso impactante da luz na sua relação com a arquitectura, a comida, a moda… mas, é claro, a música assume neste completo e estimulante puzzle uma peça fundamental e um lugar de destaque. A edição de 2021 não foi excepção, e apresenta um cartaz eclético e coeso ao nível da qualidade, com um painel de artistas e bandas que ilustram a crioulidade artística e cultural que Lisboa tem sido capaz de fomentar, atrair e incubar.

Visitámos o Iminente na passada sexta-feira, dia 8. Os três palcos do festival — o principal num vasto terreno aberto, o secundário no interior de um edifício devoluto, e ainda um terceiro numa pista de carrinhos de choque – têm sempre música, e quase sempre em simultâneo, pelo que é fisicamente impossível desdobrar-nos pelos três palcos. Faz parte do trabalho de casa de todos os ouvintes, e também deste que vos escreve: fazer escolhas, assumi-las, e fazer os possíveis para desfrutar ao máximo da música em que decidimos apostar (principalmente no caso de artistas que nunca ouvíramos antes, como tantas vezes acontece nos festivais).

Emir Kusturica & The No Smoking Orchestra. Foto de Sofia Rodrigues / CCA

Começámos a tarde no afrobaile de CelesteMariposa. O programa do festival anunciava os DJ sets do artista como “pensados para bailar, suar, gritar e celebrar o balanço da música dos PALOP, dos anos 60 até hoje, da Marrabente ao Semba, do Funaná ao Gumbé, do Socopé à Coladeira”. Não é humanamente impossível encontrar-se uma descrição objectiva alternativa que retrate com maior rigor em que consistiu aquele espectáculo. Desde os idos de 2019 que não dançávamos tanto e tão livremente; a música não deixou outra escolha. O set fluía com uma naturalidade assombrosa, e o ritmo não dava tréguas, colorido pelos samples de instrumentos tradicionais misturados com a electrónica. Uma fusão de géneros transformados numa festa imensa e musicalmente estimulante, guiada por um talento imenso, que teria talvez merecido uma outra colocação no alinhamento do festival, a uma hora mais adiantada. Foi, contudo, uma abertura exímia.

Dali fomos para o palco principal, ouvir o concerto de Emir Kusturica & The No Smoking Orchestra. A energia desta banda apanhou-nos de surpresa, naquele que foi um dos concertos mais genuinamente divertidos que tivemos a oportunidade de assistir nos últimos anos. Numa performance teatralizada e brincalhona, a banda ofereceu ao público uma festa a partir da diversidade de instrumentos em cima do palco, com direito a violino, saxofone, trompete e acordeão. A mescla de géneros expandia-se a cada música, numa sonoridade rock explicitamente cruzada com folclore dos balcãs e música cigana. Era difícil ficar-se indiferente e não se alinhar nos desafios propostos pelo vocalista; um sonho colorido que nos deu gozo viver.

Festival Iminente. Foto de Sofia Rodrigues / CCA

Chegava entretanto a hora de Ricardo Toscano, safoxonista jazz que se apresentou no Iminente no palco Choque — talvez o mais criativo do recinto, por se situar no interior de um stand de carrinhos de choque, iluminado a rigor e com direito a Rato Mickey e Bugs Bunny impressos nas telas superiores da improvisada arena, a assistir ao concerto. à boa moda do jazz, o trio alternava os momentos de protagonismo, passeando-se com mestria pelas melodias e harmonias complexas, com a capacidade de agarrar a atenção e levando-nos pelos caminhos por desbravar daquelas composições. Assistimos a menos de metade do concerto, porque quisemos ir espreitar o início do concerto de Julinho KSD no palco principal. O que mais nos impressionou no pouco a que assistimos deste concerto foi o flow do cantor. A cativante voz baça de Julinho, e a forma como cose as palavras umas nas outras e as faz soar juntas, tem um qualquer elemento encantatório e quase hipnotizante. Foi pena — pelos menos nas primeiras músicas, a que assistimos — a mistura de som não ter sido a melhor, prejudicando o volume e uma série de frequências (guitarra e teclado) que esvaziaram um pouco a emoção da performance.

Mas não ficámos para mais porque no palco Cine Estúdio começava um dos concertos que mais expectativa tínhamos para esta noite do Iminente. A dupla IKOQWE composta pelo produtor Pedro Coquenão (conhecido também como Batida) e o rapper Ikonoklasta. Os músicos interpretam duas personagens ficcionadas: Iko e Coqwe, com a cara totalmente enfaixada, à excepção de olhos e boca, e uma espécie de antenas na cabeça (vulgo, piaçabas). É difícil explicarmos o quão genuinamente interessante — e simultaneamente divertida — foi a performance dos IKOQWE. Em beats criativos e envolventes, numa linguagem não distante do kuduro mas misturada com boas doses de experimentalismo e futurismo, o duo apresentou uma narrativa que teve direito a impactantes danças de dois bailarinos exímios. Expressiva foi ainda a performance vocal de Ikonoklasta, cuja dicção clara e colocação das palavras tão bem exprimida e sentida nos permitiu acompanhar os trilhos de sentido propostos pelo projecto. Que gozo nos deu ficar ali uma hora a dançar e absorver aqueles estranhos universos, apresentados com uma pretensão divertida e um elevado grau de generosidade por parte dos artistas. Uma promessa a manter debaixo de olho.

IKOQWE. Foto de Sofia Rodrigues / CCA.

Infelizmente não tivemos a oportunidade de passar pelo concerto de Cintia, por termos ficado até ao fim em Ikoqwe e, por essa hora, estar a começar o concerto de Dino D’Santiago — não houve sequer tempo para jantar, no meio desta dança entre palcos (é a força dos cartazes bons demais…). O concerto de Dino, com um slot na noite que fez dele o cabeça-de-cartaz, foi portentoso e memorável. O cantor apresentou-se sozinho no palco principal, e ocupou-o todo. A voz de Dino é património nacional, e deveria sê-lo ainda sem fronteiras — se o seu timbre quente e doce nos registos baixos nos embala, são as suas aventuras em registos mais agudos e expansivos que provam o alcance único das suas cordas vocais, usado com parcimónia e absoluto bom gosto. Um deleite de se ouvir. Numa comunicação calorosa com o público, e mesmo no rescaldo de “uma das semanas mais difíceis” para o cantor (segundo partilhou, num momento de emotiva vulnerabilidade no início), foi capaz de nos conduzir por esta festa que globaliza a música cabo-verdiana e a cruza com uma electrónica redonda e estimulante. Foi um concerto imenso, com direito à estreia de uma música (também incrível), à companhia de Julinho KSD e de Branko que vieram visitar o palco de Dino, e à incursão final pelo meio do público num abraço colectivo e emotivo ao som de “Tudo Certo”. Sentimo-nos em família, num concerto com sabor a consagração.

Dino D’Santiago. Foto de Sofia Rodrigues / CCA

A noite seguiu ainda com os concertos de Paus e Holly, sobrepostos com o de Dino D’Santiago, e com o concerto do produtor americano The Alchemist, que apresentou ao público português um rolo aconchegante e nostálgico de samples da sua longa carreira ao serviço de tantos rappers de renome — ouviu-se Nas, Mobb Deep, Big Noyd, entre tantos e tantos outros. O hip hop instrumental tem esta força de convocar pequenos mundos e congregá-los numa boa disposição quase tranquilizante. Foi a hora final de uma noite do Iminente que ofereceu tanta diversidade musical aos milhares de pessoas que ali se juntaram para celebrar a cultura e arte que tem a ousadia de se implantar nos territórios e a capacidade de os reabilitar e habitar. Que bom é fazer parte desta utopia tão alcançável.

The Alchemist. Foto de Sofia Rodrigues / CCA.

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