In Media Res #7 – Já não sei bem o que é o amor
In media res é um espaço de ensaio a partir de elementos culturais. Reflexões desprovidas da lógica cronológica. O privilégio da ordem das nossas coisas. Sem pretensão avaliativa ou necessidade de aferição científica. Comprometida, somente, com a turva impressão pessoal do mundo das coisas. In media res porque todos surgimos no meio da História.
Na vida, calhou-me a atabalhoada virtude da inquietação. Cabe-me ir vivendo assim, conforme a impressão poética, ora buscando sentido na minudência, ora admirando a harmonia das grandes coisas. Por isto, o ponto prévio: às vezes vejo (ou creio) demais. Ali, à mesa de um jantar de infortunados, um casal de amigos. Ele, mais velho, quase cego, depositava esforço demasiado na tentativa de ver. Ela, fleumática, pertubadoramente serena. Não sei, ainda hoje, se aqueles silêncios, o literal e o das palavras supérfluas, eram serenos retiros da dor ou consequência pós-traumática da mesma. Adivinho, apenas, que daqueles silêncios jamais se volta. Que, ali, naquela cavidade existencial, o grito da revolta se deixa devorar pelo próprio eco. A angústia é a mais comiseradora das autofagias.
O silêncio, ali, é um ponto de não retorno. Há pessoas que vivem adormecidas como os vulcões, sem saber bem se repousam ou se estão à beira da extinção. Mal se discerne se ainda vivem ou se gastam os últimos cartuchos de uma vivacidade anterior. A violência contida na dor indecifrável dos outros é, porventura, a definição de fragilidade. E, ali, entre aqueles dois seres frágeis, cava-se um fosso humano onde cabia tudo. E se a realidade confirma a dor, o amor trata-se apenas de uma impressão turva. Ali, nunca há-de gritar ou subtraiu-se tanto que nada se impele de energia para nascer.
Abandonado, o amor ampara-se miseravelmente no gesto mecânico de contínuo desgaste que são, ali, aquelas vidas. E, por isso, eu deixei de saber o que é o amor. Nunca ousei pensar que se podia disfarçar de contenção. Jamais vislumbrei o amor como um não-ato, uma intenção não concretizada de um pensamento deliciosamente ingénuo. Não deixei, no meu pensamento, o amor ser um homem grande e cheio de feridas. Quis ver-lhe, sempre, as virtudes eloquentes da libertação.
Para mim, o amor vivia sempre. Até o amor falhado. O amor não correspondido é triste por ser uma torrente unilateral de vida. Alguém que estende a mão côncava em busca de completude e termina envergonhadamente só. Contudo, até aí, o amor se assume como um gesto.
Ali, entre aqueles dois, o amor não vai ganhar forma de nada. Viverá à revelia do impulso, cifrando-se nas garras maquinais do tempo e sendo pormenor desmentido da ação. Naquele vácuo, o amor resvale para o lugar indefinido das coisas que não são. O amor, nunca deixando de ser amor, vai, contudo, ser nada. E tal constatação fere, com brutal acutilância, as minhas convenções. O amor material, cristalizado num qualquer gesto, não é, afinal, truísmo.
No fundo, o que me arrebata é a primeira consciência de que o amor não nos salva. Sim, contém a vertiginosa eficiência do amparo. Mas é inútil, no mais precioso sentido do termo. Não é vital, é corolário existencial. O amor não cura a nossa inevitável solidão nem reverte qualquer eventual dor. O amor dilui espaços, empiricamente vazios. Faz nascer.
Na arquitectura, o desafio do criador é o espaço. Do intervalo entre construções, brota o novo empreendimento e nós, ávidos construtores, lá vamos diluindo espaços interiores. O amor nem tudo suprime mas quase tudo ampara. Mais do que as edificações que partilhamos, aproximam-nos os descampados, esses lugares de ninguém onde, até sem gestos, podemos esbarrar em alguém. De repente, o espaço, aparentemente tão teu, é um campo aberto de pessoas como tu.
E, entre todos, ali, nunca me ocorreu que o amor se pudesse abster. É que o espaço, de tão vasto e informe, sabe a solidão. Saber que há mais do que uma pessoa só é estranho e convida a aritmética do afeto. Demora a entender que pode haver, entre solitários, um amor abnegado. O amor exprime-se em complexos virtuosismos.
Demora até entender a solidão. Não como consequência trágica de uma vida falhada em algum aspecto mas como uma inevitabilidade da existência. Solidão é a sufocante noção que apenas morrerá uma ínfima parte do que poderia ter morrido. Pelo amor, pela solidariedade, pela fraternidade, buscamos diluir espaços, empiricamente vazios.
Talvez o vazio seja a única herança do que fomos antes de ser: o não ser. Talvez esse espaço seja um reflexo por demais evidente daquilo que será para sempre indecifrável. Tanto que o transforma numa impossibilidade. Não ser é a negação da existência, mas não é o contrário de vida. Não ser é o nada. O espaço e o tempo. Ponto e chegada do ciclo da vida. O interlúdio é viver. Ali, entre aqueles dois, percebi que somos o interlúdio, contido ou explícito, uns dos outros.
Frame retirado do filme “The Lobster”, realizado por Yorgos Lanthimos.