Influencers, mas a que custo?

por João Estróia Vieira,    13 Outubro, 2020
Influencers, mas a que custo?
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Está na altura de diferenciarmos os influencers de activistas das redes sociais, e de separar também — ainda que mais difícil — o tal virtue signalling (“sinalizar de virtudes”, muitas das vezes comparativamente ao “outro”) de um discurso informado e fundamentado. Acredito, claro, que há uma espécie de dever moral em todos nós de suportar práticas e comportamentos que nos aproximem, que nos tornem seres mais empáticos e compreensivos com os outros, mas devo obrigar alguém que não entende, não está informado nem está sensibilizado para o tema — muito por culpa de estar numa possível bolha de privilégio, sim – seja essa mudança que eu quero no Mundo? Essa deve partir de nós.

Um dos meus filmes favoritos de Woody Allen é muitas das vezes um dos mais esquecidos na vasta obra do cineasta estadunidense. Raramente consta nas famosas listas dos mais “conhecidos” ou “divertidos” (que aqui, tantas vezes, se confundem com os de riso fácil). Falo de Zelig, que além de ser um dos primeiros mockumentarys (uma obra que se faz passar por documentário parodiando um certo evento ou pessoa, diluindo assim, dessa forma, a separação entre realidade e ficção) é, sobretudo, um tratado sobre a psicologia de massas e como somos influenciados pelo meio que nos rodeia e uma sociedade fortemente marcada pelo culto às celebridades.

Nunca foi tão fácil praticar esse culto exacerbado a uma celebridade (um termo que é demasiado pequeno para a quantidade de pessoas que lá caberão nos dias de hoje) seja pelos likes ou partilhas, seja pela maior facilidade que temos em saber o que essas pessoas fazem, compram, gostam ou têm a dizer. É nesta proximidade que começa uma confusão que não vem de agora. Esse culto à personalidade leva-nos, não poucas vezes, a confundir esse alguém de quem gostamos por uma ou outra razão, de alguém que tem de praticar uma ou outra acção porque há um movimento que se está a gerar nesse sentido. Falo, sobretudo, de causas sociais. Numa altura em que o debate sobre os conflitos raciais nos EUA ainda dominavam a ordem do dia em Portugal — news flash: ainda não acabaram, caso tenham essa ideia erradamente gerada pela actual falta de partilhas ou notícias dos telejornais em comparação com tempos idos — houve uma influencer que, nas suas redes, referiu que não ia partilhar conteúdo sobre o que estava a acontecer nos Estados Unidos da América porque não tinha obrigação de o fazer, acrescentando ainda que muitos só o faziam para serem “cool” e “inseridos na sociedade”. Corro o risco de, tirando a questionável escolha de “cool” — repito, questionável, pois entendo o que quis dizer na altura —, concordar em absoluto que o que disse, sobretudo quando referiu ainda que os que lhe pediam isso se deviam preocupar em partilhar esse conteúdo com a sua família e amigos. Sem tirar nem pôr, e já explicarei porquê. Não demorou até que a influencer em questão fosse criticada por todos os lados, até por pessoas com muito mais espaço mediático que ela. Porquê? Porque não compreenderam alguém não se querer pronunciar sobre o tema, e porque o virtue signalling leva estes extremismos e apontares de dedos.

Há poucos dias foi notícia que um restaurante em Lisboa convidou influencers a lá ir, provar as suas refeições e no final pagarem pelas mesmas, sendo que o dinheiro da refeição seria posteriormente doado a uma instituição de caridade à sua escolha. Problema? Nenhum influencer apareceu. Mas, será mesmo “esse” o problema? Ou será antes continuarmos a não ver um influencer como uma actividade profissional nos dias de hoje, pela qual se recebe dinheiro e através da qual muitos já fazem disso vida? Permitam-me: quem errou aqui não foram os influencers que não acederam ao convite. Quem estava enganado foi quem achou que eles tinham obrigação moral de aceder a um convite para ir lá jantar — e agora pasmem-se — pagando, quando possivelmente terão dezenas de convites do género sem a obrigação pecuniária associada ou, podem não gostar da comida, ou podem apenas fazer uma doação, ainda que menor, para qualquer instituição de solidariedade sem precisar de ir lá jantar, ou nem isso, pois ninguém os obriga. Enquanto isso o restaurante já recebeu boa publicidade… à custa dos influencers (os grandes malvados nesta história).

Mais uma vez o problema centra-se na nossa insistência de que qualquer pessoa tem uma obrigação moral proporcional ao número de seguidores que tem nas suas redes sociais, descaracterizando e esquecendo assim se é alguém que devíamos ter a lutar por esses temas, que sequer se importa com eles ou se está minimamente informado. Os mesmos que exigem, indiscriminadamente, que todos os famosos partilhem ou se pronunciem, ou, até, aqueles que quando existe uma catástrofe exigem (!) que esses mesmos famosos contribuam com dinheiro. Tão ou mais pernicioso quanto o silêncio sobre um tema será sempre a sua inserção no espaço público feita de forma desinformada ou descontextualizada . Está na altura de não confundirmos todos os influencers com activistas pelos direitos humanos. E digo “todos” pois existem, de facto, pessoas com crescente influência nas redes sociais que a usam para promover mensagens empáticas e na defesa de direitos humanos e da compreensão pelo outro, pessoas que usam o seu espaço para a partilha de mensagens e conteúdo nesse sentido.

O silêncio e a conivência nunca mudaram algo já estabelecido, dando, pelo contrário, mais força à sua continuação. Nesse aspecto, só o movimento em massa sobre uma causa demonstrará, de facto, que a sociedade quer mudar, e tão democraticamente legitima como as políticas de um governo eleito, é essa mudança impulsionada pelos cidadãos. Ainda assim, bem diferente disso, será a ideia de defender a obrigatoriedade de um qualquer influencer que ganhou “fama” a promover roupa ou a reagir a vídeos de comédia, ser a base dessa mudança que se quer no sistema ou na sociedade e aproveitar essa negação para sinalizar nele tudo o que de mal se passa no Mundo. Tal como essa influencer referiu, comecemos nós por mudar as mentalidades dos nossos amigos e familiares, sem necessidade de que outro alguém o faça por nós. 

Está na altura de diferenciarmos os influencers de activistas das redes sociais, e de separar também — ainda que mais difícil — o tal virtue signalling (“sinalizar de virtudes”, muitas das vezes comparativamente ao “outro”) de um discurso informado e fundamentado. Acredito, claro, que há uma espécie de dever moral em todos nós de suportar práticas e comportamentos que nos aproximem, que nos tornem seres mais empáticos e compreensivos com os outros, mas devo obrigar alguém que não entende, não está informado nem está sensibilizado para o tema — muito por culpa de estar numa possível bolha de privilégio, sim — seja essa mudança que eu quero no Mundo? Essa deve partir de nós.

NOTA: Não referi nomes dos influencers de forma propositada pois não é objectivo que o debate ou pensamento crítico seja toldado pelo prévio conhecimento dos nomes dos envolvidos e de que lado da “argumentativo” e comportamental uns e outros se encontravam.

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