Insulte melhor
Palhaço, otário, incompetente, ceguinho, totó, idiota. Pode parecer o início de um alinhamento escalonado por Graeme Souness, treinador do Benfica no final da década de 90, mas apenas pretendo enumerar alguns dos insultos com que fui brindado esta semana no trânsito. Mentes mais precipitadas concluirão que tal se deveu às minhas habilidades como condutor. No entanto, trata-se de um estudo antropológico-etnográfico ao qual tenho vindo a dedicar-me nos últimos tempos: a qualidade dos insultos utilizados em Portugal.
Tentando excluir o vernáculo desta exposição, espero conseguir demonstrar aqui o meu descontentamento com a fraca imaginação dos portugueses quando toca a ultrajar o próximo. É notório e obviamente público que as ofensas mais usadas são pouco criativas: há muito mais por onde escolher. As pessoas tendem a puxar pouco pelo cérebro quando utilizam insultos comuns, sendo que os podemos dividir em várias categorias.
Os de origem animal: ursos, camelos, porcos, vacas, macacos, cabras, burros, papalvos, passarinhos, cães, etc. Neste subgénero, o meu preferido é “cabrão”, que era o que a minha saudosa avó me chamava quando não lhe fazia a vontade. Os que nem sequer estão para escolher um, atalham com “animal” ou “besta”, que é do mais genérico que há. Pois bem, além de elementar, este tipo de comparação penaliza por vezes mais o indefeso bicho do que o humano a quem se dirige.
Os de origem vegetal: aqui equipara-se o antagonista a uma fruta ou legume — nabo, nabiça, banana, anona, cabeça de abóbora, cabeça-de-alho-chocho.
Outras vezes, os insultantes optam por atribuir profissões aleatórias ao seu alvo: trolha, palhaço, malabarista, trabalhador sexual, fabricante de panelas; há também quem opte por ofender uma pessoa designando-a simplesmente de “artista” — o que diz bastante da visão de um povo sobre as artes.
Características físicas ou “deficiências” como coxo, cego, cabeçudo, narigudo, baixo ou gordo são também muito utilizados para irritar outrem, o que hoje em dia se denomina body shaming.
E há quem equivalha o inimigo a certos objectos: fogareiro, cepo, armário, betoneira, caixa de óculos, pau-de-virar-tripas.
Algo também muito explorado na arte de achincalhar são os termos meio pueris, de origem onomatopaica, como totó ou xexé, este último para quem se encontra numa fase adiantada da vida. (Atenção, há totós que nunca chegam a xexés: podem atirar-se de cabeça contra um qualquer palerma na estrada, por exemplo, e nunca atingir a terceira idade. Mas também há xexés que sempre foram uns totós. E, claro, existem xexés que foram sempre impecáveis até virarem a boneca).
Outra fórmula habitual no nosso país é a de atribuir o defeito com o qual queremos classificar o nosso adversário ao abundante nome próprio “José”, embora usando o seu diminutivo. Embora aqui quase todas as adições sejam possíveis, as mais comuns vão desde a insinuante Zé Penetra até à existencialista Zé Ninguém, nunca esquecendo a mais escatológica Zé Merdas. Por norma, esta conjugação de nome e apelido é antecedida pelos determinantes demonstrativos este ou aquele. Há uma que eu nunca percebi, também bastante verbalizada: “Zé Tó”, tal como em “olha-me este Zé Tó…”. Dá até pena dos Josés Antónios. Já os Chicos são sempre Espertos, frutos da tradição de difamar empregando aparentes virtudes: habilidoso, sabichão, etc;
De todos os ultrajes mais praticados, gosto sobretudo dos compostos: lambe-cus, caga-tacos, borra-botas (estes três, ditos assim de rajada, parecem formar até uma pequenina história). Cara-de-cu-à-paisana é o meu preferido desta categoria: basta tentar traduzi-lo para outra língua para perceber-lhe o real valor.
Os insultos vão evoluindo com o tempo. Podemos distinguir os mais antigos (como biltre, patife, estólido), dos mais recentes (como infoexcluído, caça-cliques, ou terraplanista — vendo bem, este último é ancestral e moderno ao mesmo tempo) .
E, claro, os espíritos mais tacanhos preferem tentar ferir com religião, cor de pele, identidade ou orientação sexual, ideologia, origem, condição social ou mesmo clube desportivo. Já para não falar naqueles que, tentando um ataque, se limitam a constatar o evidente. (A melhor resposta para quem nos acusa de “estar bêbado” é “e novidades?”, se for verdade, ou “lamentavelmente, é mentira”, caso contrário).
Seja como for, todas estas ofensas são demasiado batidas. Fico sempre lixado quando me insultam com nomes óbvios. Espero sempre mais de quem me xinga.
No nobre ofício de vilipendiar destacam-se autênticos artífices. Um deles surgiu num episódio da Liga dos Últimos, citando o que disse a um árbitro: “você foi promovido de pedra a calhau” (maravilhosa aplicação de insultos de origem mineral). É bom vitupério porque sugere uma “promoção”, o que deixa o alvo desarmado e interessado no resto da frase que, logo de imediato, o reduz a calhau. Para quem era pedra, é bater no fundo.
Já que estou numa de futebol, área fértil para este estudo, recordo a seguinte estrofe declamada nas bancadas do Estádio da Luz, também dedicada ao homem do apito: “Mata a tua mãe, tira-lhe o sangue, corta-a às postas e faz cabidela de puta”. Meus amigos, isto não é um insulto: é uma receita culinária canibal com princípio, meio e fim, onde apenas no desfecho percebemos que a progenitora do juiz da partida pratica a sua atividade no ramo da prostituição. Só faltou dizer “junta sal q.b. e vinagre a gosto”. Se bem trabalhada, é possível adaptar a fórmula a uma chanfana à moda de Miranda do Corvo.
Há zonas do país onde os insultos são, per se, muito mais fascinantes porque são lapidados há séculos. Na Nazaré, por exemplo, não se deseja mal a alguém. Roga-se a Deus para que lhe “dê tantos câncaros como ovos são precisos para partir a Pedra do Guilhim”. No Norte ninguém manda calar o outro. Diz-se que se está “cheio de t’oubir”. E na Beira Interior, se alguém começa a mexer muito num artigo de uma loja, por exemplo, é logo acusado de ser “espanhol”. Há ofensas gravíssimas.
A não ser que tenhamos estudado psiquiatria, não devemos acusar um indivíduo de ser “maluco”. Mas nada contra afirmar com segurança que aquele “virou a boneca” ou “fritou a pipoca”.
Existe um truque para gerar bons insultos: utilizar o superlativo absoluto sintético do adjetivo considerado “bom” com o substantivo tido como “mau”: “reverendíssima besta” (como diria o escritor Mário de Andrade), “digníssimo otário”, “excelentíssimo valdevinos”, “estimadíssimo cretino”. Se utilizar um termo que o seu rival desconhece, até pode levá-lo a pensar que está a ser elogiado: p. ex. “meritíssimo néscio” (esta até pode dizer em latim).
Uma formulação excelente permite insultar o próximo, um povo inteiro e a si mesmo, se a ele pertencer. Atente-se nas palavras do comediante escocês Frankie Boyle sobre o ator norte-americano que interpretou William Wallace no filme Braveheart: “Nunca pensei que Mel Gibson pudesse encarnar um escocês, mas olhem para ele agora: alcoólico e racista!”.
Se não tiver a capacidade de Boyle, pode sempre optar pelos conselhos deste notabilíssimo parvo que lhe escreve. Junte algumas das categorias evocadas, mesmo as mais exploradas, baralhe e volte a dar seguindo estas regras:
- utilize o insulto de forma composta, juntando vários tipos (quantos mais, melhor);
- deixe os Zés em paz; troque por outros nomes próprios;
- trate sempre o alvo da injúria na terceira pessoa, tal como em Cascais os pais tratam os filhos (implica uma certa distância e dá um ar de superioridade ao insultante);
- esqueça as mães; o que não falta é família para insultar;
- evite o óbvio: se é para usar animais, não os coloque a fazer o que toda a gente sabe (que o porco é nojento, a vaca é leiteira, etc);
- seja infantil: os insultos das crianças são os melhores.
Da próxima vez que for ao futebol considere a enunciação: “não viu que era falta, boi ceguinho caga-tacos?”. Se o insultarem num bar, porque não um: “o amigo (diga isto com apreciável desprezo) tem ar de ser enteado ilegítimo de um Joaquim Penetra pouco pontual que nunca ninguém convidou para qualquer festividade, sua cabeça de besugo irregular!”. Numa altercação de trânsito, tente: “ó Amílcar Banana, irrepreensível essa manobra que fez, em termos de cagada!”. Se no supermercado alguém estiver demasiado perto de si na fila da caixa experimente: “ó senhora cavalgadura prima afastada de um grandíssimo peixe-bolha que mama como um ornitorrinco cheira-cus incompetente, importa-se de respeitar o meu espaço pessoal, se faz favor? Obrigado”.
Sempre importante é a educação, mesmo na hora de amaldiçoar. “Faz favor” e “obrigado” são a linha que separa uma pessoa polida e progressista de um langonha (Nazaré™) grosseiro e rude. Mesmo se, num acesso de fúria, não conseguir evitar o vernáculo, mantenha a cortesia. Por exemplo, se chegou até aqui, o leitor porventura estará a pensar: “Por obséquio, importa-se de terminar com a porcaria inodora desta crónica, seu panda relinchante, canhoto dos escritos?”. Bravo! É esse o espírito. Ainda assim, talvez consiga aperfeiçoar. Como diria Beckett: tente outra vez, insulte outra vez, insulte melhor.