“Isso não me define!”
Rui Cruz é humorista, stand up comedian e um génio (palavras dele). Escreve coisas que vê e sente e tenta com isso cultivar o pedantismo intelectual que é tão bem visto na comunidade artística.
Há várias coisas que me irritam diariamente. As injustiças sociais, o abandono de animais ou o meu vizinho que tem Pólo Norte como música de despertar são algumas delas, mas se há coisa que me tem tirado do sério nos últimos tempos é esta frase que tenho ouvido e lido até à exaustão: “isso não me define”. E é uma frase que dá para tudo. “A minha roupa não me define! O que eu leio não me define! O que eu oiço não me define! O que eu como não me define! A minha orientação sexual não me define! A minha identidade de género não me define! A minha casa não me define! O meu partido não me define! O que eu digo não me define! A minha vida não define! Etc”. Não sei de onde vem esta ideia de que agora somos todos tão especiais que nada nos define, mas sei que é tão falaciosa como as fotos da comida que aparecem em qualquer menu rasca de restaurante de beira de praia.
Não sei de onde vem, mas tenho uma pequena suspeita: da desresponsabilização que andamos a cultivar enquanto sociedade. Quando alguém diz que “fãfãfã não me define” raramente está a falar de algo positivo ou de algo que o orgulhe. Nunca é “descobrir a cura para o cancro, resolver o problema da fome e voltar atrás no tempo para impedir que o criador da Ondamania nascesse não me define!”, é sempre alguma coisa que a pessoa em questão tenta minorar pois sente que ou o deixa mal visto ou que os outros não vão apreciar. É quase uma desculpa disfarçada de empoderamento pessoal.
Atenção, não estou com isto a dizer que sou um defensor de rótulos, se bem que dão jeito quando vais a um supermercado, não é isso. Sou é um defensor de assumir honestamente o que se é, o que se faz e do que se gosta, porque, surpresa!, é exactamente o conjunto de todas estas coisas que define o tipo de pessoa que és. Exemplos? Se gostas de funk brasileiro, andas todo nu só com galochas na rua, lês Afonso Noite-Luar, votas PNR, só comes alcaparras e sentes atracção sexual por cadáveres és o tipo de pessoa com quem eu não quero tomar café, porque tudo isso faz de ti, a meu ver, uma pessoa abjecta, mesmo que grites que isso não te define. Nós somos o conjunto das nossas escolhas, boas e más. Somos o conjunto dos nossos gostos, dos nossos hábitos, rituais, ideologias, atitudes e somos até as pessoas que escolhemos ter na nossa vida. Somos isso tudo. E rejeitar assumi-lo numa altura em que tanto se luta por aceitação e inclusão é, para mim, contraproducente, principalmente quando essa rejeição existe apenas porque é mais fácil chutar para canto o que te envergonha do que enfrentar críticas e questões de alguém.
Com isto quero dizer que sim, que o que eu visto, como, fodo, bebo, leio, oiço, gosto, digo ou penso faz de mim o que sou. Sejam estas coisas boas ou más, do vosso agrado ou não, eu sou isto: um homem, heterossexual, cisgénero, benfiquista, omnívoro, liberal de esquerda, arrogante, desleixado, irritadiço, melómano, que gosta de se vestir como o cantor de uma banda rock decadente dos 70’s, preguiçoso, aluado, demasiado sensível, pedante, fatalista, artista e mais uma carrada de coisas giras (ou não, dependendo do ponto de vista). Tudo isto é o Rui Cruz. Tudo menos este texto, porque “escrever crónicas ao domingo, de ressaca, não me define!”