Isto era para se chamar “A História de um Servo”

por Leonardo Cruz,    14 Maio, 2022
Isto era para se chamar “A História de um Servo”
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“A História de um servo”. Era este o nome da crónica. Não era para ser escrita desta forma. Seria bem melhor, tenho a certeza, algo que se tornaria viral. Objeto de estudo nas aulas de crónica literária nas próximas décadas. Em Portugal e em todos os países de língua portuguesa, principalmente no de Clarice Lispector. E também na América do Norte. Até porque esta história passar-se-ia num país imaginário tipo Gilead — a república totalitária do romance de Margaret Atwood “Handmaid’s Tale”. Daí a alusão no título que eu iria utilizar. O texto, original e disruptivo, seria uma brilhante paródia àquele livro, mas aqui a distopia envolvia uma sociedade liderada por um género diferente.

Começaria com uma mulher, personagem principal, que regressava a casa de autocarro. No caminho lia notícias de um jornal: “MINISTRA DO AMBIENTE ACUSADA DE CORRUPÇÃO: ’SUA ÚNICA PREOCUPAÇÃO ERA A SUSTENTABILIDADE DA SUA CARTEIRA’ — REFERE FONTE MAIS OU MENOS PRÓXIMA”. Nalguns cabeçalhos eu tentaria caprichar com algum humor, para distrair o leitor e tentar que não se apercebesse logo do que queria mostrar. As manchetes seriam dúbias quanto ao género, por exemplo “PRESIDENTE CONDECORA PIANISTA”, “TAXISTA EM PELOTA CHOCA ELETRICISTA” ou “DESIGNER RECEBE DINHEIRO PELO TRABALHO CONTRATADO”, etc. A personagem comentaria apenas uma notícia: “MULHER MORRE EM FESTEJOS FUTEBOLÍSTICOS — PRINCIPAL SUSPEITA É NETA DA LÍDER DA CLAQUE”. Diria algo como: “As adeptas deste clube são sempre a mesma coisa”.

Aos poucos, os leitores começariam a perceber a predominância feminina.

Chegando a casa, a protagonista — teria que lhe arranjar um nome, algo forte, carismático, um daqueles nomes de personagem que dá origem a adjetivos ou a exemplos como Quixote, Oblomov, Bartleby, ou cuja longevidade é quase maior que os próprios livros, Blimunda Sete Luas ou Mrs. Dalloway — Maria Júlia encontra o marido, vestido com umas jardineiras cor-de-rosa (todos os homens vestiam assim), a lavar a louça com luvas de guarda-redes amarelas presas aos pulsos. Refere estar cansado, que lhe doem as costas de passar a roupa a ferro. Maria Júlia parece nem ouvir, atarefada com o seu trabalho, só tem tempo para se descalçar e ligar o computador. Tem que acabar o seu artigo intitulado “A Defesa da Ininterrupção Obrigatória da Abstinência Sexual Masculina”, para enviar para o jornal. Seria só neste ponto que os leitores conheceriam a sua profissão. Nesta fase, haveria um diálogo entre Maria Júlia e o seu homem: uma espécie de comic relief que expunha o conservadorismo desta família consubstanciado nas opiniões da matriarca em como “os machos são feitos apenas para procriar”. Seria invocada a lei que proíbe quaisquer práticas sexuais que não sirvam o fim prioritário da maculada concepção, incluindo a masturbação. O marido (seu nome próprio fora alterado para Damariajúlia) queixar-se-ia de dor testicular enquanto tentaria convencer a esposa a ter mais um filho. Maria Júlia nega o pedido. Refere estar satisfeita com o tempo que tem passado com “Mr. Darcy”, o seu robot sexual. “Uma pérola de comicidade” diriam as críticas deste pedaço de belíssima prosa, se ele fosse escrito, estou em crer. A jornalista ligaria então a uma amiga convidando-a para “ir aos gajos”, enquanto piscava o olho a Damariajúlia, que sabia tratar-se de uma brincadeira. Subentende-se um convite da amiga quando a resposta de Maria Júlia é a divertida punchline que prepararia o fim do texto: “ele não pode, está naqueles dias”. 

Esta crónica tinha tudo para ser um sucesso. Estive mesmo mesmo mesmo para escrevê-la. Porém, quando me preparava para pesquisar no Google “poderão porventura os testículos realmente inchar por ausência prolongada de ejaculação”, sou interrompido por uma notícia de última hora na televisão: SUPREMO TRIBUNAL DOS EUA PRONTO PARA ANULAR DIREITO AO ABORTO. Fiquei tristíssimo. Não vale a pena inventar: nenhuma distopia ficcionada bate as da vida real. Com os nervos, carreguei no enter. Além de não fazer a maravilhosa crónica que me traria a imortalidade, ainda fiquei com o motor de busca preocupado comigo.

É uma pena. Era um texto mesmo impecável. Há gente que nunca devia ter nascido.

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