J.D. Vance e a nova forma da direita fazer política

por Rui Maciel,    18 Janeiro, 2025
J.D. Vance e a nova forma da direita fazer política
DR

“Hillbilly Elegy” ou “Lamentações de Uma América em Ruínas” é um livro para quem gosta de se desafiar. Publicado no início de 2016, antes da eleição de Trump, o livro descreve de uma forma biográfica, a demografia que viria a ser instrumental na chegada ao poder de Donald Trump: a classe branca trabalhadora. Decidi lê-lo após a leitura de um artigo de opinião, de Miguel Herdade, intitulado “O Lamento dos Saloios (ou porque devemos ler J.D. Vance)”. Convenceu-me pela seguinte frase: “Ironicamente, muitas das pessoas ditas “sofisticadas” e “letradas” a quem tenho sugerido o livro ficam estupefactas e até ofendidas com a possibilidade de J.D. Vance ter escrito um bom livro, recusando-se liminarmente a lê-lo”. Tentei ler este livro sob o véu da ignorância de Rawls. Ignorei a história que já conhecia sobre Vance e tentei colocar-me nos pés daquele jovem que, de acordo com o livro, passou por muitas dificuldades ao longo da vida até entrar em Yale. 

Por mais que não concordemos com os seus pontos de vista, nem queiramos este tipo de pessoa no poder, ler o livro de J.D. Vance é um ponto de partida para entender esta nova forma de fazer política.

A primeira parte do livro, aparentemente, de política não tem nada. Acompanhamos o crescimento do menino J.D. através de uma descrição inocente, pelos olhos de uma criança, de uma família caótica. Em paralelo, nos vários episódios da sua vida, vemos uma sentimental descrição de quem são as pessoas que viviam na zona da Apalachia e que emigraram para o agora intitulado Rusty Iron Belt. A história dos familiares de J.D. é um mero veículo para explicar esta transição: desde os avós que emigram do Kentucky e que ascendem economicamente em Middletown, Ohio, trabalhando na fábrica de aço que dá emprego a toda a cidade, ao seu pai que o abandona e se redescobre religiosamente, ou à sua mãe, que é uma toxicodependente, vítima da crise de opióides dos Estados Unidos. Uma das críticas mais frequentes a este obra é um possível exagero destas histórias para consequentemente criar uma ligação emocional com o leitor. Contudo, num artigo da The New Yorker, percebe-se que após este fact-checking, somente são encontradas nuances que a meu ver não destroem em nada o conteúdo do livro, além do próprio autor admitir que uma elegia “pode estar corruptível à memória humana”.

Capa de “Lamentações de Uma América em Ruínas” (ed. Dom Quixote) / DR

Na segunda parte do livro, quando J.D. já é um adolescente mais consciente abandona a narrativa sobre a sua família para passar ao confronto cultural. E aqui, passamos da compaixão e empatia, ao sumo político do livro. Esta obra introduz-nos a uma forma de fazer política não tão direta, mas omnipresente nos dias de hoje: é muito mais importante aquilo que sentimos do que aquilo que acontece e pensamos.

J.D. Vance, embalado pela primeira parte do livro, escreve sempre subtilmente sobre política sem nunca o admitir explicitamente. Embora um livro extraordinariamente vocal no orgulho em ser americano e em ser saloio, são poucas as referências a política concreta. J.D. substitui, por exemplo, um ataque ao estado social, a um ataque direto às pessoas que têm telemóveis enquanto usam senhas sociais para comprar comida no supermercado. Uma estratégia interessante se pensarmos como funciona hoje a política nos dias de hoje: há muito maior interesse em usar casos concretos, muitas vezes estatisticamente insignificantes, do que usar qualquer número para provar alguma coisa.

Além disso, J.D. atira-nos para uma dimensão pessoal e sentimental que nos absorve na sua maneira de ver o mundo. O livro culmina com a entrada em Yale de J.D. Vance. E um dos excertos que me mais me marcou é quando ele se desloca a uma estação de serviço, vê uma empregada com uma camisola de Yale, pergunta-lhe se ela andou lá, e na pergunta de volta, ele recusa-se a dizer que estuda em Yale porque tem medo de deixar de ser identificado como um saloio. O contínuo desfiar da identidade de J.D. é usado como um veículo de compaixão que nos deixa hipnotizados na narrativa.

J.D. Vance / Fotografia do Congresso dos EUA / Via Wikimedia Commons

Nos capítulos sobre Yale, J.D. menciona as redes de elites que controlam o ensino, a falta de acesso por pessoas de baixo estatuto socioeconómico e as barreiras invisíveis que fazem com que mesmo que alguém chegue a alguma instituição de elite, haverá sempre algo a mandá-los para baixo. J.D. refere um episódio que sumaria este confronto. Na procura do seu primeiro emprego, ainda durante Yale, J.D. descreve uma conversa que tem com uma professora sua, chegando à conclusão que “Enquanto os pobres enviam currículos, os ricos fazem networking

Esta direita musculada e emocional está preocupada em ser até o mais ordinária possível, contra-sistema e retrocesso. Alguém alguma vez pensaria olhando para os movimentos políticos do século XIX e XX, que nos dias de hoje quem se posicionaria como sendo contra-sistema seria a direita conservadora?

Este livro é de fácil leitura e quem não tem atenção pode ser sugado para uma maneira perigosa de pensar. J.D. induz-nos emocionalmente para uma conclusão: a culpa da situação dos saloios é uma questão de atitude. O que lhes falta são valores fortes de trabalho, um núcleo familiar estável, e uma sociedade que não os induza a comportamentos preguiçosos. O brilhantismo político do livro é este: nunca diz nada em concreto, apenas fala para o nosso inconsciente. 

Porém, o mais importante no livro é a captura do zeitgeist da América de Donald Trump antes de ela ter começado. Foi escrito e publicado antes de ser nomeado candidato republicano em 2016. E para o meu espanto, inclusive, nesse ano, no dia 4 de julho (data importantíssima nos Estados Unidos na qual se celebra o dia da Independência), J.D Vance escreve um artigo crítico a Donald Trump, intitulado “O Opióide das Massas”, comparando Donald Trump a uma droga que não entra pelas veias, mas sim pela mente. Com este tipo de asserções, conseguimos perceber que em 8 anos algo na cabeça de J.D. Vance mudou.

Capa de “Regresso a Reims” de Didier Eribon (ed. Dom Quixote)

Não me querendo focar nos contorcionismos políticos, ou como na ideia que o poder corrompe praticamente qualquer pessoa, questiono o porquê de nos dias de hoje, quem está a capturar os desfavorecidos, quem está a falar para aqueles que ficaram para trás na sociedade, é uma direita musculada e emocional em vez da típica esquerda defensora da classe trabalhadora. E este livro parece fazer o mesmo que o “Regresso a Reims” de Didier Eribon, embora de uma perspetiva ideologia oposta. Não que mencione soluções, mas disseca de uma forma sincera e mais relacional os problemas da sociedade do que os ícones culturais usados pela campanha democrata, como o Brat Summer de Charli XCX. Se os opositores dos republicanos continuarem neste caminho de pegar em modas sazonais e de bolha, It’s Joever não só para os democratas, mas para toda a esquerda.

Também, no podcast, If Books that Could Kill, assistimos a este problema por parte de uma certa esquerda, tal como referido por Miguel Herdade. Ignoram por completo qualquer problema apresentado e focam-se no ataque pessoal ao recém eleito vice-presidente. Aliás, no início do podcast, atacam até mais os liberals (no contexto americano, de esquerda) que se dispõem a olhar para os problemas enunciados por J.D. Vance do que no próprio livro e autor.

Querendo ir mais além do que o diagnóstico típico, julgo estarmos perante uma problema de estética. A esquerda, tal como é exemplificado pelo podcast que menciono, apresenta uma estética de superioridade moral, de status quo, e de vanguarda intelectual. Esta direita musculada e emocional está preocupada em ser até o mais ordinária possível, contra-sistema e retrocesso. Alguém alguma vez pensaria olhando para os movimentos políticos do século XIX e XX, que nos dias de hoje quem se posicionaria como sendo contra-sistema seria a direita conservadora?

Nas eleições presidenciais de 1992, um estrategista de Bill Clinton cunhou a frase “É a economia, estúpido”. Trinta e dois anos depois, um partido incumbente, com uma economia robusta, perde as eleições. Com um vice-presidente eleito, o crescimento exponencial de figuras de direita edgy nas redes sociais, e uma constante conversa sobre perceções, a economia parece ter ficado para segundo lugar. Por mais que não concordemos com os seus pontos de vista, nem queiramos este tipo de pessoa no poder, ler o livro de J.D. Vance é um ponto de partida para entender esta nova forma de fazer política. 

Sugestões do cronista:

Viver fora do país cria sempre alguma nostalgia. No último trimestre do ano de 2024, a série “Duarte e Companhia”, disponível na RTP Arquivos, fez-me muita companhia. Feita claramente com pouco orçamento (o que ainda lhe dá mais graça), é uma viagem no tempo e no espaço, de uma forma extraordinariamente engraçada. A série é uma cápsula do tempo dos anos 80 em Portugal: mullets, bigodes, gravatas curtas, indumentárias ousadas, uma banda sonora com rock e pop português, piadas hoje muito questionáveis, decoração de estilo kitsch. Vê-la agora evoca um sentimento de saudade por algo que nem vivi. É também daquelas séries que quando uma pessoa vê, fica com a sensação de que toda a gente envolvida se divertiu imenso nas gravações. Para meu espanto, a série tem uma incrível pontuação de 8.4 no IMDB.

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