Já não há aquela coisa, já não há

por Romão Rodrigues,    30 Novembro, 2021
Já não há aquela coisa,  já não há
Fotografia de sue hughes / Unsplash
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Tenho impressões digitais. No mundo de hoje – expressão favorita da minha avó materna – todas as espécies se guarnecem de impressões digitais, de dedadas como ela designa. Quer dizer, se analiticamente construirmos este pensamento, nem todas as espécies vão com a cara das dedadas. A minha avó não vai. Sei de mais três, quatro pessoas que não suportam dedadas. Possivelmente, existem mais algumas. Dedadas é um sinónimo vulgar para impressões digitais. Menos técnico, mais caduco. Do tempo correspondente ao uso de saia rodada, da naftalina, das retretes, das cartas. Convém rebobinar…

Vinha a público falar de cartas.

(- Vinha, já não vem? – pergunta a voz interior.
Não penetremos esse pano da estupidez.)

Sofro com o esmorecer da presença das cartas. A princípio, pode parecer uma perfeita imbecilidade sentir o eclipse de algo que não experienciei pelos mais vastos motivos, com prólogo no biológico. Confesso que até possa ser uma imbecilidade a princípio, no meio e no fim de toda esta tagarelice. O Rui Reininho, no álbum Valsa dos Detetives, dizia algo sobre o vulgar e o intelectual, sobre a depressão e a pressão sentida e que a criatura digital tendia para mais louca. Tudo isto acaba por resgatar o seu quê de verdade.

No seio de uma tragédia (um suicídio, por exemplo), a carta pode ser um baluarte da sensibilidade a longo prazo. Um documento bem redigido, a honrar a estrutura, sem erros ortográficos seria benéfico para a imagem deixada pelo defunto e poderia representar, no futuro, um motivo de orgulho para os que cá ficaram. A SMS ou a fotografia via WhatsApp ridicularizaria o ato. A sensibilidade requer bom senso…

As primeiras cartas que recebi remontam à época primária da minha escolaridade. O teor? Espécimen de sentimento que atravessa uma das formas de amor num ápice ao ponto de as próprias emissoras as rasgarem e contribuírem para a polifonia da sala de aula: choro, barulho de material escolar a embater na parede e brados do corpo docente. Estruturalmente, a mensagem continha, por vezes, uma introdução – fruto da boa disposição, talvez – e um papel composto pela tríplice aliança (queres namorar comigo?): aceitava quase sempre, a menos que estivesse atolado de trabalho. E sentia-me vivo, repleto de frescura interior!

Mais tarde, não sei precisar quando, confrontei a minha avó e os meus pais com a anterior situação. Senti um riso com meia dose de desamor. Sem frieza, sem desrespeito, mas prontamente com um véu içado para pôr cobro à minha inocência. A instantaneidade com que recrutaram a expressão “no meu tempo” não alistou a minha perplexidade, nem por sombras. A minha avó, diga-se de passagem, deu uma abada aos meus pais. Mencionar o Ultramar, o primeiro amor e frisar que de 15 em 15 dias a correspondência era arquitetada arrebata qualquer outro assunto. A jornada mental tinha começado há breves instantes: o resto era estória pura, bombeada a partir dos dois polos genealógicos…

Agora, mais sensato, mais adulto – existe quem discuta o epíteto; tenho a leve sensação de que a trupe é liderada pelos meus pais – considero injustificado o tal desamor. As minhas eram fraquinhas comparativamente às deles. Além disso, ir ao correio habitacional, seja por vontade própria ou a mando de alguém, conduziu-me à compreensão da cisma: a primeira reação prende-se ao colocar da mão na abertura, fazer cócegas aos envelopes (?) e afastá-los da saída; a segunda corresponde à reflexão, lembrando que temos a chave minúscula no bolso apertado e ao aplicar do golpe de misericórdia; a terceira – e última – consiste em recolher o punhado, agrupar 90% do mesmo em “atuais dívidas” e o que resta em “publicidade”.

Por vezes, enquanto a minha avó cozinha, conversamos sobre o mundo, sobre aquilo que está a acontecer. Segundo a própria, já não há aquela coisa, já não há. Perdeu-se tudo. E depois o mundo está desta maneira. Só desgraças. De súbito, sai para verificar a caixa de correio e, imbuída naquele deslumbramento, esquece-se de limpar as mãos; eu espreito pela porta e verifico todo aquele procedimento já descrito.

“Vês!? Antigamente, escreviam-se cartas!”, afirma.

As finanças, o departamento das águas e a companhia da luz ocupam – certamente – um lugar especial no seu coração. Concluo isso sempre que ela regressa com os envelopes na mão. E não, não menciono as dedadas deixadas…

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