Já não se masturbam homens de aspecto decente em vãos de escada

por Rui Cruz,    15 Janeiro, 2019
Já não se masturbam homens de aspecto decente em vãos de escada
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Rui Cruz é humorista, stand up comedian e um génio (palavras dele). Escreve coisas que vê e sente e tenta com isso cultivar o pedantismo intelectual que é tão bem visto na comunidade artística.

Vamos lá começar isto sem rodeios: tirando aquela vez em que apanhei o meu avô a trocar de roupa e, internamente, implorei por pixeis à la porno japonês para a sua genitália, sou contra a censura seja em que forma for. Acho mesmo que limitar palavras, ideias, imagens, etc, é desrespeitoso não só para quem é censurado, mas especialmente para o cidadão que é “protegido” dessas mesmas palavras, ideias, imagens, etc. É condescendente, é dizer a esse mesmo cidadão que ele não possuiu capacidades intelectuais para sozinho decidir por si o que é bom ou mau ou o que gosta e detesta. Posto isto, tenho mesmo de falar da Porto Editora.

Calma! Não, a Porto Editora não lançou outro livro de exercícios diferente para rapazes e raparigas, até porque as Capazes estão caladas, já se viu que foi uma coisa bem menos importante. “Então o que fez a Porto Editora?”, pergunta o leitor que só abriu este link porque me achou extremamente sensual na foto que o acompanha. Bom, o que a Porto Editora fez foi “censurar” 3 versos da “Ode Triunfal” de Álvaro de Campos nos manuais escolares do 12.º ano, mais precisamente estes: “Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas”; “E cujas filhas aos oito anos – e eu acho isto belo e amo-o! / Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada”. Quer dizer, segundo o comunicado da editora, os versos não estão censurados, estão sinalizados com reticências nos livros dos alunos, mas nos livros dos professores o poema aparece completo e cabe ao professor decidir se quer ou não abordar esses versos na aula. E porquê? Porque estes versos têm asneiras e falam de pedofilia e os professores é que conhecem as turmas e o que os alunos aguentem ouvir/ler. E esta é a parte onde todos rimos muito.

Eu não sei que conhecimento da juventude tem o pessoal que escreve os manuais escolares, mas, meus amigos, isto é um livro para pessoal do 12º ano… “Puta”, para a grande maioria deles, é “bom dia”. Basta abrir o twitter e ver como falam os adolescentes de hoje em dia (sim, sim… eu já digo “adolescentes de hoje em dia”, deixem-me! Eu tenho ciática e calças à boca-de-sino, tenho estatuto e acessórios suficientes para ser velho do Restelo à vontade) para perceber que a única palavra ali que os pode ofender é “pândegos”. E só porque muitos não sabem o que é que isso quer dizer.

Porque é isto. Estão a cortar versos de um dos maiores poetas e escritores de sempre porque são “agressivos” e depois um gajo olha para o que passa na rádio ou para o que se ouve actualmente em qualquer bar ou festa e ouvimos letras como “Na arte do sexo/ Pode crer que eu esculacho/ Faço tudo que ele gosta e ainda dou meu cu de cabeça pra baixo” e está tudo ok. Abre-se o instagram e vemos miúdas de 18 anos (na verdade são mais novas, mas não quero ter a PJ outra vez à perna. Senhores agentes, aquilo era mesmo chá de carqueja… juro) seminuas a imitarem poses das Kardashians e miúdos da mesma idade a comentarem galantemente “Sois extremamente venusta. Adoraria ter tão graciosa presença no meu leito” (sim, é um eufemismo. Não me apetece escrever “fodia-te toda” ou “tens snap?”) e é normal, são jovens. “Pândegos e putas” isso sim, é ir longe demais e pode danificar para sempre a cabecinha destas crianças em formação intelectual e moral. Coitadinhas…

E pior é que isto nem faz sentido, retirar estes versos. Estamos a falar de adolescentes, pessoal com as hormonas todas aos saltos, pessoal que se excita com uma brisa mais forte que abane a roupa nos sítios certos, e que tem, segundo diversos estudos dos quais só li o título, poucos hábitos de leitura. Querem meter os putos a ler? Mostrem-lhes mais coisas destas! Poemas com masturbação, prosas com descrições detalhadas de mamas e pilas. Querem lá os putos saber dos decassílabos d’ “Os Lusíadas”, mostrem-lhes a parte do pinanço da Ilha dos Amores e vão ver se não começam todos a gostar do Luís Vaz. Aliás, querem meter os putos a ler a sério? Metam o “120 Dias de Sodoma” no programa escolar. Vão ver se a média de português não sobe logo.

Mas pronto, hoje é aqui que estamos, num tempo em que um adolescente consegue ver um anão vestido de Hitler a ter relações sexuais com uma amputada vestida de Pai Natal no telemóvel durante o intervalo, mas não pode ler que miúdas de 8 anos masturbavam homens de aspecto decente em vãos de escada num poema que tem uma data e um contexto e faz parte da herança cultural de um país, tudo porque pode ser difícil explicar isso aos miúdos. E depois admiramo-nos que famosos a fazerem playback seja um programa de horário nobre na TV e gozamos muito. Razão tinha Mike Judge. Ainda vamos ver couves regadas com Gatorade.

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