Partículas Comensais: ‘escrever empobrece o que a fantasia enriquece’
Jaime Milheiro, psiquiatra e psicanalista, é considerado uma das vozes mais importantes da psicanálise em Portugal, pelo seu contributo ao longo de várias décadas, quer em termos clínicos, quer em termos académicos. O seu novo livro tem como título “Partículas Comensais”, da Cordão de Leitura.
Como o próprio autor refere, todos os Homens procuram, principalmente no fim das suas vidas, as suas próprias partículas comensais, essas que lhes poderão dar um significado que ainda buscam, mas “as partículas regressivas já não serão comensais: serão cinzas: apenas cinzas, sem eco nem retorno.” Quer isto dizer que tudo na vida tem o seu tempo, a sua oportunidade, a sua circunstância singular. Não se poderão repetir episódios do passado, mas apenas perceber-lhes o sentido e a forma como eles ainda ressoam no presente.
Esta obra reconcilia dois aspectos que, normalmente, têm andado separados: independência de pensamento e qualidade de pensamento. Actualmente, raros são os pensamentos originais que não incorrem em experimentações mal-sucedidas. Esse não parece ser o caso de Jaime Milheiro. Pelo facto do autor ser uma pessoa com uma grande experiência de vida e ter colhido, ao longo de décadas, um conhecimento profundo da natureza humana, faz com que não esteja coarctado por modas passageiras ou tendências oportunistas.
Dessa forma, estas breves reflexões são, para o leitor, aprendizagens únicas sobre o ofício de viver. Os temas vão desde assuntos relacionados com a profissão do autor, até notas autobiográficas, passando por observações sobre a sociedade, em termos psicológicos e relacionais. Em certo momento, o autor diz que “O sentido da vida é a busca do sentido da vida./ O significado da vida é a busca do significado da vida.”, expondo, desta forma, a incompletude que caracteriza a essência humana e que só se realiza, não pelo desejo de alcançar objectivos desumanos, mas pelo prazer de os perseguir.
Por outro lado, Jaime Milheiro fala, com preocupação, da sociedade em que vivemos, uma sociedade em que “Tudo parece fácil no pensamento, na propaganda, na desresponsabilização”. “Mas onde estará o princípio da realidade?” questiona, chamando a atenção para o facto de que, quando a palavra não tem palavra, esta constitui uma boa forma de nos furtarmos à acção. Esta ideia vai de encontro a uma intervenção feita pelo próprio, no passado, em que defendia que, para um indivíduo ter saúde mental, três critérios deveriam estar reunidos: primeiro, cumprir o que cada um promete a si mesmo (responsabilização); segundo, ter consciência de que não pode ser ou ter tudo (capacidade de escolha); e terceiro, no fundamental e essencial, ter capacidade de prosseguir autonomamente (capacidade de autonomia). Só estas três valências poderão fazer com que a pessoa esteja, segundo palavras do psicanalista, “de bem consigo, de bem com os outros e de bem a fazer a vida”.
Jaime Milheiro dedica também alguns dos seus pensamentos à sedução, ao enamoramento e ao erotismo. Refere, numa analogia com as tâmaras, que “colher as pessoas é também um saber e um jeito de mão: não se brinca, nem se aprende. Pratica-se. Ninguém colhe por correspondência ou apenas porque deseja colher.” Há determinados conhecimentos que vêm da experiência, unicamente da experiência de cada um e que são intransmissíveis. Cada pessoa tem que procurar as suas próprias respostas, num “jogo” que comporta riscos, derrotas, aprendizagens, mas também algumas recompensas, e quiçá, vitórias.
Ainda a respeito da sedução, o autor descreve-a como uma comunicação de “virtudes pecadoras e guloseimas sofredoras, em horizontes de cosmogonias e de aspiradas fantasias”, isto é, para que o prosseguimento se dê, é necessário ter a consciência que, ainda que as razões últimas estejam sempre presentes no enleio de forma subliminar, pelo meio, exercícios de se dizer a verdade por portas travessas devem ser praticados, nos quais “a imaginação e a criatividade” participarão “no desejado erotismo.”
Ao longo de todo o livro, muitos dos temas são abordados com um saudável sentido de humor, às vezes, mais espirituoso, outras vezes, mais contundente. O autor, pela jovialidade que conserva, e pelo vanguardismo que inscreve nos seus textos, acaba por criar no leitor a sensação de ter atravessado atalhos da consciência e do inconsciente humanos, evitando emaranhados banais e floreados redundantes.
No entanto, a leitura desta obra não traz consigo a panaceia para problemas sociais e individuais. Pelo contrário: ao fazer um levantamento daquilo que são as circunstâncias do presente, e perspectivando aquilo que serão as do futuro, o autor incita o leitor a construir a sua própria história de vida. Essa história de vida vale mais do que qualquer relato sobre ela feito, vale mais do que qualquer obra em detrimento dela, assinalada e distinguida, pois:
“Nos futuros Jogos Olímpicos do Pensamento a escrita não terá lugar. Pensar é voar no espaço interno, sem academismos nem bibliografias. Dar palavra ao pensamento é conferir-lhe simbolismo, num processo de aprendizagem. Escrever o pensamento é confiná-lo a tecnicidades, balizadas pela razão.”
Fotografias retiradas do portal da editora do livro.