Jamaicando
Rui Cruz é humorista, stand up comedian e um génio (palavras dele). Escreve coisas que vê e sente e tenta com isso cultivar o pedantismo intelectual que é tão bem visto na comunidade artística.
Se há coisa que os confrontos no Bairro da Jamaica nos mostrou é que, actualmente, vivemos numa sociedade de extremos. Ninguém quer ouvir, mas toda a gente quer falar e, pior ainda, toda a gente quer ter razão, mesmo que para isso tenha de ignorar factos. Hoje, Portugal divide-se em dois grandes grupos: os que vociferam histericamente que “Portugal é racista!” e os que respondem aos berros e a tapar os ouvidos “não há racismo em Portugal!”. Ambos estão errados, mas isso pouco importa para eles.
Vamos por partes. A carga policial no Bairro da Jamaica é um acto racista? Ninguém pode dizer com certeza absoluta que sim. Sei que a carga policial que vemos no vídeo é exagerada e tem de ser investigada, mas esta só existiu porque os civis envolvidos eram negros? Podíamos concordar se não tivéssemos já visto o mesmo tipo de violência policial contra civis brancos, mas, infelizmente, já vimos. Aliás, não há muito tempo assisti a uma carga policial extremamente violenta contra adeptos do Ajax no Estádio da Luz, existindo até um vídeo que circulou bastante nos fóruns de futebol e que mostra um polícia a dar com o cassetete num adepto branco que estava simplesmente sentado, com um copo na mão enquanto via o jogo, sem sequer se aperceber da entrada dos agentes na caixa. Mais! Ainda ontem foram disparadas balas de borracha num jogo de futebol das distritais (!) em Ermesinde, que ainda por cima é a terra das gajas boas.
Portanto, histórias de violência policial temos várias e contra todas as etnias (Yeeeeeiiiiii! Ponto para nós! Ou ponto, ou se calhar revíamos o modus operandi dos nossos agentes de autoridade). Mas isso quer dizer que o que se passou ali não é racismo? Não sei. Sei que a associação de moradores do Bairro da Jamaica diz que não e que conta uma história bastante diferente daquela que o grupo “Portugal é racista” conta, afirmando inclusivamente que a polícia foi apedrejada mal chegou e reagiu assim, com violência excessiva, mas não motivada por questão raciais. E agora? Em quem devemos acreditar? Nas pessoas que estavam e vivem no bairro e viram tudo a acontecer ou no pessoal do twitter cuja a única Jamaica que conhece está no Cais do Sodré e vende cerveja a 3€? E esse é um dos perigos do extremismo, mesmo este cheio de boas intenções. É esta capacidade que se ganha de fechar os olhos a qualquer coisa que contrarie a opinião que já tens, pois as declarações da presidente da associação de moradores foram completamente esquecidas por este grupo.
Por outro lado, se não houve uma motivação racial neste incidente (a acreditar na associação de moradores), porque raio existiram manifestações anti-racismo e porque é que, praticamente todas as noites da última semana, temos visto caixotes do lixo e carros queimados e apedrejamentos de montras e esquadras da polícia (algumas até foram atacadas com cocktails molotov, o que só prova que a gasolina não está assim tão cara)? Porque de facto há racismo em Portugal e as minorias étnicas sofrem-no todos os dias e estão fartas. É inegável que existe racismo em Portugal, basta passar uma tarde numa tasca para comprovar isso mesmo. E quem diz tasca diz campo de golfe, porque, ao contrário do que se pensa, o racismo não existe só no pessoal que ainda usa Thermotebes com nódoas de tinto. Frases como “os ciganos só roubam”, “os pretos nem para trabalhar servem”, “olha ali um monhé, vai perguntar se vende chamuças” ouvem-se diariamente, não o admitir é estar num estado de negação maior do que o dos apoiantes do Bruno de Carvalho. Portanto, se há portugueses racistas, há portugueses racistas na polícia (basta ver os comentários na página do PNR para constatar isso mesmo) e esses polícias obviamente que agem de maneira mais violenta quando o suspeito é negro porque…. vá, são racistas. E isso é preocupante e tem de acabar pois um país não pode considerar-se evoluído quando ainda se avaliam pessoas pela cor da pele, orientação sexual ou género, principalmente quando essa avaliação é feita por pessoal das forças de segurança.
E é isto que não entendo. Esta necessidade de estar num dos lados da barricada, este preto e branco. Ou dizes que somos todos racistas (menos quem o afirma e os seus amigos) ou dizes que ninguém é racista (mesmo que o teu pai chame Mantorras a todos os negros). Não! Isto não é preto e branco, isto é cinzento e com mais tons do que o cinzento do Grey. Esta necessidade que há hoje de teres de te encaixar num grupo, este FOMO (Fear Of Missing Out), só cria cegueira e só leva a mais violência, seja ela física ou verbal, como se pode comprovar pela discussão entre 3 amigos sobre a manifestação anti-racismo que acabou com um deles esfaqueado 6 vezes apenas por terem opiniões diferentes sobre a posição a tomar.
Estes actos de vandalismo cometidos pelo pessoal que se manifesta contra o racismo existiriam se não tivessem a benevolência da elite intelectual de esquerda que os desculpabiliza? Esta resposta inumana, violenta e intimidante dos fascistas e racistas existiria se a elite intelectual de direita os censurasse? Duvido muito. Mas o bom-senso está démodé, rende poucos likes e, acima de tudo, não traz protagonismo. Porque é isso que me parece que está a motivar tudo isto, mais do que o incidente em si: uma enorme ânsia de protagonismo de gente dos dois lados e um aproveitamento político quer da direita, quer da esquerda. Há uma esquerda, isenta de ideias e ideais, que vive de aprovação e likes nas redes e que usa movimentos sociais para simplesmente ganhar reconhecimento e aprovação de terceiros e há uma direita, ressabiada e assustada, que teme perder o seu estatuto social e que vê no medo uma maneira de não se tornar irrelevante ou ultrapassada. E ambos vão usar o que puderem para crescer ou não perder o seu estatuto. No meio disto estão as minorias, que todos os dias sofrem de preconceito e que vêem grande parte da população nacional a ignorar os seus problemas e a negar as suas experiências, e a polícia, que zela pela nossa segurança e que vê outra grande parte da população que protege a acusá-la de ser toda racista e passar o dia a bater em minorias. Ora, a continuarmos assim, não se surpreendam quando chegarmos à coesão social do Brasil, mas com um carnaval com menos mamas ao léu.
Porque, na realidade, a verdade está no meio. Portugal é racista? Não. A constituição, a existência do SOS Racismo e a carreira do Daniel Nascimento são a prova disso. Não há racismo em Portugal? Há. A existência do PNR, as caixas de comentários online dos jornais e a quantidade de piadas com o tio bêbedo que no natal diz que os “árabes só mandam bombas” são a prova disso. Já usar os confrontos no Bairro da Jamaica para legitimar qualquer uma das extremas é só desonesto. E o pior disto tudo é que, desde há uma semana para cá, quando se fala em Jamaica já não é um grande canhão nos beiços que me vem à cabeça, mas sim centenas de desequilibrados oportunistas a bramir “esquerdalhos de merda! Morte aos pretos que são todos uns selvagens criminosos!” ou “fascistas cabrões! Todos os crimes de minorias são justificados pelo preconceito!”. E isso é que não perdoo. Nem eu nem a organização do Andanças.
Resumindo e aplicando a lógica:
1- Portugal é todo racista.
A PSP é portuguesa, logo, a PSP é racista
O Bairro da Jamaica é em Portugal, logo, o Bairro da Jamaica é racista.
Assim sendo, os confrontos no Bairro da Jamaica foram só supremacistas raciais à porrada.
2- Não há racismo em Portugal.
O Urban Beach é em Portugal, logo, não é racista.
A maioria de vocês que lê isto é portuguesa, logo, não é racista.
Assim sendo, peguem nos vossos amigos de todas as etnias, tipo anúncio da Benetton, e tentem entrar lá num sábado à noite.
Nenhuma delas está certa, pois não? Não. Então tenham calma, pensem bem antes de dizer disparates e, se calhar, antes de começarem aos berros lembrem-se do que disse aquele que é possivelmente o mais conhecido habitante de todas as jamaicas:
“One love, one heart
Let’s get together and feel all right”