João Miguel Tavares e António de Oliveira Salazar
João Miguel Tavares escreveu hoje no Público sobre o fantasma de Salazar. A propósito do nascimento do “museu” em Santa Comba, defende a tese de que não faz qualquer sentido continuar, quase meio século depois do homem ter batido as botas, a perder tempo com indignações. Na sua opinião é ridículo e até um pouco absurdo. Concede que Salazar é um tipo curioso, mas que já não existe ninguém que verdadeiramente se possa sentir ameaçado ou partilhar a ideia de um mundo que está morto e enterrado. Para o último presidente das Comemorações do Dia de Portugal, Salazar pertence à história e tanta indignação à volta de um tal assunto diz bem do país que somos.
Meu caro João Miguel, não tens razão. Sei que cresceste a 100 metros do lugar onde discursaste no 5 de outubro, no cimo da Avenida Frei Amador Arrais, em Portalegre. Cada um de nós tem a sua história, a sua vida, os seus fantasmas. Imagino que existiriam milhares de formas de adaptar o teu discurso, tantas formas como as vidas diferentes que nos fazem ser estes e não outros. Eu só conheci o meu pai em 1974, por exemplo. Recebera um aviso dos seus camaradas comunistas que seria prudente deixar-se ficar por Paris. Sei bem, Salazar já morrera, mas cá para nós ainda estava vivo, pelo menos o suficiente para que a primavera marcelista se tenha transformado num outono muito chuvoso. Mas a minha história não é relevante.
Ao contrário da história dos filhos dos tipos a quem a PIDE torturou ou matou. Repara bem, imagina bem, o que teriam escrito nas comemorações de um 5 de outubro. Não teriam a capacidade de escrever um texto tão bom e distanciado como o teu, colar-se-iam excessivamente à memória, teriam a tentação de se indignar o que não ficaria bem. Uma chatice falarem de um pai ou de uma mãe traumatizados pela tortura do sono, queimados por pontas de cigarros nos mamilos, apertados nos testículos. Não ficaria mesmo nada bem.
Sabes que amparei as lágrimas de Edmundo Pedro? A sua memória do Tarrafal, os gritos que ele ouvia todos os santos dias dentro da sua cabeça… gritos do irmão de 14 anos que morreu nos seus braços uns dias depois de ter sido sovado por polícias numa manifestação de estudantes no início do salazarismo. O irmão pedia-lhe que não o deixasse morrer. O Edmundo não conseguia apagar aquela voz. E eu também não conseguirei esquecer as suas lágrimas, João Miguel. E o respeito pela memória de todas as pessoas que arriscaram o coiro para que eu e tu pudéssemos dizer umas coisas.
Não, Salazar não era apenas um tipo singular. E não era apenas o homem que simboliza um certo Portugal que, ao contrário do que dizes, ainda não está totalmente morto. Salazar não foi apenas isso. Ele foi um ditador que mandou matar e torturar gente que ainda está viva ou que, tendo morrido, deixou filhos e netos que viram as suas vidas ser marcadas por essa ignomínia.
É por isso que sou contra o Museu Salazar em Santa Comba. Não por achar que é uma ameaça. Mas por saber que devemos preservar a memória, respeitar o que nos fez chegar até aqui. Como tu bem o fizeste preservando a memória da tua bonita história, do caminho que fizeste da tua casa na Avenida Frei Amador Arrais para o mundo. É apenas uma questão de respeitar a memória dos que fizeram um outro caminho, dizer não a um regime que tu também condenas. Gente que pagou com a vida, com o corpo e com a sua saúde mental. Gente que ainda aqui está e que tem também a sua Avenida de onde poderia discursar num qualquer dia de Portugal.