João Miguel Tavares, o normalizador

por Marta Vicente,    7 Novembro, 2020
João Miguel Tavares, o normalizador
Fotografia de Tom Barrett / Unsplash
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No Governo Sombra, João Miguel Tavares já tinha vindo comparar o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista com o CHEGA. Na altura, Ricardo Araújo Pereira tentou desconstruir o seu argumento, de forma breve, mas a conversa não se alongou muito. Aproveitando, agora, o novo acordo entre esse mesmo partido e o PSD, João Miguel Tavares voltou à mesma comparação, desta vez num artigo no jornal Público, onde defende, aliás, esse mesmo acordo.

Não tendo por hábito perder tempo a ler artigos de João Miguel Tavares, este chamou-me a atenção. Não só porque, tal como vim a confirmar pela leitura do mesmo, abre as portas à normalização da extrema-direita através dos meios de comunicação, mas também porque é publicado numa altura em que o debate devia ser sobre as implicações do entendimento entre CHEGA e PSD, e não sobre as semelhanças entre CHEGA, BE e PCP. Como nos tem vindo a habituar, a falta de lógica na construção dos seus argumentos e, principalmente, a falta de fundamentação dos mesmos, não escapava a este artigo. É apenas no penúltimo parágrafo que tenta responder àquele que afirma ser o “ponto central” do seu argumento e que dá título ao seu artigo. 

Em primeiro lugar, mistura aquilo que é uma posição política em relação a outros países, como o que fala ser “a defesa contínua do PCP por ditaduras infames”, com uma proposta muito concreta defendida pelo Chega para Portugal, escrita no seu programa político, como é a castração química de pedófilos. Já para não falar do quão bizarro é referir os acampamentos de jovens do Bloco de Esquerda na comparação com, de novo, uma medida muito concreta defendida para Portugal, como é a proposta de prisão perpétua. É o chamado, e à boa maneira de João Miguel Tavares escrever, “comparar alhos com bugalhos”. Se quer comparar propostas políticas deve, então, focar-se somente em propostas políticas. Se quer comparar posições partidárias sobre outros países, deve, então, comparar posições partidárias sobre outros países. Mas, como escrito no título, fala em “coisas horríveis” e são estas quatro as “coisas horríveis” que acha que são lógicas e suficientes para justificar a sua posição.

Em segundo lugar, não parece claro para João Miguel Tavares que a divergência mais problemática entre estes partidos não assenta nas medidas que apresentam, mas, sim, no facto de estarmos a lidar com democráticos, de um lado, e antidemocráticos, do outro. Se isso, para João Miguel Tavares se resume a acampamentos e declarações, espero que comece a prestar mais atenção à ascensão da extrema-direita um pouco por todo o mundo. E se queremos entrar nesta lógica comparativa, relembro que Bloco e PCP nunca deram quaisquer provas que o autoritarismo era o caminho que queriam para Portugal; já o mesmo não se pode dizer do CHEGA, cujas ligações de membros a grupos fascistas já vieram a público. 

Relembro, ainda, que não é o crescimento da extrema-esquerda que está a pôr em causa as democracias consolidadas por este mundo fora. O socialismo ou, na conceção daqueles que não sabem aplicar conceitos, o chamado marxismo cultural, só é um fantasma para quem está pouco atento. Viktor Orbán não é de extrema-esquerda, Trump não é de extrema-esquerda, nem Narendra Modi o é. E, é exatamente por isso, que a Hungria já mal tem um sistema de justiça independente e uma imprensa livre, que os Estados Unidos traçaram um caminho para travar a imigração, ou que Índia tem uma nova lei da nacionalidade que discrimina muçulmanos. 

Em Portugal, João Miguel Tavares, bem como quem lhe dá palco, deveria estar a lutar para que não chegássemos aqui, para que medidas como o confinamento da comunidade cigana ou a privatização de serviços públicos essenciais, como o SNS, nunca tivessem espaço no debate político sério. Ignorar a ligação do CHEGA à extrema-direita xenófoba, que vive de ataques constantes aos direitos humanos e às regras do jogo democrático, é ignorar tanto a História como o panorama político atual. Tal como é, por tudo isto, não perceber o erro e a gravidade do acordo entre o CHEGA e o PSD Açores. 

O problema não está naquilo que João Miguel Tavares acha. O problema está no facto de aquilo que ele acha ter espaço no jornal Público ou na SIC, através do Governo Sombra. O problema é que o que ele acha abre portas a um discurso de normalização da extrema-direita na esfera pública, através dos meios de comunicação. Tal como o PSD fez, ao colocar o CHEGA no mesmo patamar do que os outros partidos, João Miguel Tavares dá espaço e vem legitimar narrativas antidemocráticas, cujas consequências deveria conhecer. 

Do jornal Público, tal como de qualquer outro meio de comunicação em Portugal, espera-se que os seus colunistas discordem nos mais variados assuntos, mas espera-se, igualmente, que essas discordâncias informem os leitores, sejam fundamentadas e, principalmente, não tratem de forma leviana políticos e partidos antidemocráticos. Porque é mesmo disso que se trata, seja qual for a inclinação política, saber que a luta é pela democracia.

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