Jogar para esmagar o outro
Quem nunca ficou chateado por perder um jogo? Quem não se martiriza durante uns minutos por tomar uma má decisão, por ter azar, por não ser capaz de dar a volta e superar o(s) adversário(s)? Sejam mais físicos ou de tabuleiro, os jogos são uma excelente forma de desenvolver competências e criar relações — ou de as destruir.
Durante séculos, os jogos serviram, essencialmente, um propósito normativo, isto é, eram veículos para a transmissão de valores e preceitos de uma forma descontraída e didática. Esta frase, aparentemente simples e consensual, não está correcta. Não porque isso não tenha acontecido, mas sim porque parece marcar uma ruptura com esse passado. Na realidade, e apesar da narrativa pueril de um certo pós-modernismo de que estamos numa era sem imposição estrutural de valores, os jogos continuam hoje a servir o mesmo propósito de sempre. A grande diferença é que já não é uma entidade como a Igreja que dita o que deve ou não ser jogado (e em que moldes), mas sim uma coisa mais etérea e, também por isso, mais perigosa — a lei da concorrência.
“O Monopólio é um jogo bastante claro e aberto. Não oculta uma agenda e diz declaradamente ao que vem — criar milionários à custa da condenação à miséria de outros.”
Toda a nossa vida é afectada pela dinâmica que a concorrência obriga, desde a escolha da padaria em que compramos o pão pela manhã às relações afectuosas que criamos. A lógica mercantil, na qual a lei da concorrência é pilar basilar, não só está presente em todas as esferas do indivíduo, como constantemente gera disrupções com vista à criação e captura de novos mercados. É o caso do futebol, o desporto mais famoso do mundo e um perfeito exemplo de como a lógica de mercado se apoderou de um jogo e o tornou num mero produto sujeito às suas leis.
Um sistema assim montado, manifestamente anti-natural, não sobrevive sem condicionamento e opressão. Não os notar não significa que não existam. Como nos diz Foucault, a normalidade é o conjunto de formas de opressão e dominação que nos são invisíveis. De forma menos erudita, podemos dizer que a melhor maneira de obrigar alguém a fazer algo é dar-lhe a ilusão de escolha e liberdade quando, na realidade, o labirinto em que se encontra é cada vez mais pré-determinado. Os jogos, assim entendidos, não são, então, meros divertimentos (visão pueril) ou reflexos da estrutura de valores da sociedade (visão liberal-inerte) — são elementos de imposição, moldagem e dominação.
“É um erro acreditar que o Monopólio apenas exacerba as características negativas dos indivíduos. Ele impõe e molda vários dos maneirismos do nosso zeitgeist — o individualismo extremo, o subir à custa do outro, a auto-flagelação pela perda e pelo insucesso.”
O expoente máximo desta leitura é o jogo de tabuleiro mais conhecido da humanidade: o Monopólio. Outrora um jogo de crítica ao capitalismo clássico e dos malefícios da criação de monopólios, hoje é o seu exacto oposto: encarna o espírito do capitalismo neoliberal, da concorrência desmedida e, sobretudo, da destruição do outro para obter um triunfo pessoal. Contudo, é um erro acreditar que o Monopólio apenas exacerba as características negativas dos indivíduos. Ele impõe e molda vários dos maneirismos do nosso zeitgeist — o individualismo extremo, o subir à custa do outro, a auto-flagelação pela perda e pelo insucesso. Não é, por isso, de todo verdade que seja um jogo de soma nula — é de terra queimada, de vitórias de Pirro, de destruição e aniquilação. Em suma, é o início do enraizamento de muita da nossa desumanidade.
“A melhor maneira de obrigar alguém a fazer algo é dar-lhe a ilusão de escolha e liberdade. Os jogos não são meros divertimentos ou reflexos da estrutura de valores da sociedade — são elementos de imposição, moldagem e dominação.”
O mais curioso é que, ao contrário de outros que ocultam o seu real propósito, o Monopólio é um jogo bastante claro e aberto. Não oculta uma agenda e diz declaradamente ao que vem — criar milionários à custa da condenação à miséria de outros. Só no pináculo do neoliberalismo tal pode passar sem o mínimo de rebuliço social. Sucede que a realidade, ao contrário do que dizem muitos que promovem o jogo, é muitíssimo mais complexa e, sobretudo, estanque. Miseráveis são todos os que jogam — os poucos milionários estão entretidos com os recebimentos.
Imagine que estava a jogar Monopólio e que um outro jogador começava com cem vezes o seu dinheiro e, por algum mecanismo oculto, esse mesmo jogador conseguia ganhar e acumular muito mais dinheiro, assim como ter acesso a mais propriedades e a oportunidades para as adquirir. Provavelmente ficaria extremamente chateado com o desenrolar do jogo e, não sabendo de que a culpa era da forma como o sistema estava montado, culpar-se-ia do seu fraco desempenho no jogo. O problema é que isto não acontece só neste exemplo de Monopólio.