“Jojo Rabbit”, de Taika Waititi: uma sátira anti-nazi em tempo de crise de valores
Jojo Rabbit, filme realizado e escrito por Taika Waititi, chega finalmente a Portugal. Uma sátira ao regime nazi que, correndo o risco de branquear e banalizar o extremismo, consegue balançar-se de forma eficaz na ténue linha entre a ofensa e a comédia.
Taika Waititi parte para Jojo Rabbit com a base de Caging Skies, livro da neozelandesa Christine Leunens que nunca reuniu grande consenso. Com tons de comédia negra, Waititi tem um trabalho bastante perigoso e propenso a correr mal: o de fazer comédia com um dos eventos mais trágicos da História humana.
Adaptar um livro para cinema em que a premissa principal passa por colocar uma criança nazi a questionar os seus valores quando conhece uma rapariga judia refugiada na sua casa pode parecer a narração perfeita para um drama de consciencialização política, humanização e descontrução das diferenças. No entanto, para um filme de comédia que se assume como sátira, esta premissa poderia facilmente ser pantanosa ao ponto de resultar num filme de mau gosto, ofensivo e que branqueia as atrocidades passadas. Aqui o papel de Waititi como realizador e argumentista é fulcral no controlo que é preciso manter para que o filme não derive para esses territórios e o facto é que Jojo Rabbit não o faz.
Além dos momentos quase sem sentido, das piadas abundantes e das gargalhadas que o filme provoca, nada é colocado de ânimo leve, a sátira joga bem com o ridículo e o ridículo constrói a crítica necessária e, hoje em dia, pertinente.
Um exercício do ridículo que demonstra o desprezo que o próprio filme tem para com a ideologia que domina o seu protagonista, atitude que é encarnada na personagem de Scarlett Johansson, Rosie Betzler. Aliás, esta é a personagem pivotal de toda a ação, não fosse ela a própria essência do filme. Ela representa a moral, a esperança, a mudança, a comédia e a tragédia de Jojo Rabbit.
Povoado, de resto, por personagens-tipo, cada uma em estilo caricatural, todas habitam na estória de Jojo (Roman Griffin Davis) como forças do bem e do mal, num mundo completamente dicotómico e característico da inocência de uma criança. O interessante depois é ver como o argumento de Waititi vai desconstruindo essa dicotomia com a apresentação de novas realidades e mostrando ao próprio Jojo como é que a sua estória estava tão errada perante a História.
Filmado de forma eficaz, a fazer lembrar o universo kitsch criado por Wes Anderson em Moonrise Kingdom, a única falha de Jojo Rabbit é de não ter a acutilância de Inglorious Basterds (Quentin Tarantino). Apesar de tudo o que já dissemos sobre o argumento de Waititi, sentimos em Jojo Rabbit às vezes uma insegurança para transmitir a mensagem que sabemos que tem. Em cenas, sentimos que Waititi prefere deixar nas entrelinhas da comédia a crítica subjacente que quer transmitir, em vez de a gritar pelos ecrãs por este mundo fora.
Mas não é por isso que o resultado final deixa de ser sólido e, acima de tudo, importante de perceber que não abre portas a ser mal entendido.
Um filme de comédia em tempo de crise, de sátira em tempo de estupidificação, de crítica em tempo de branqueamento. Um recordar que a arte de fazer comédia é também interventiva e que deve ter sempre um papel consciente do passado, relevante no presente e assertiva com o futuro.
Este artigo foi escrito por Ricardo Rodrigues e foi originalmente publicado em Espalha Factos.