“Joker”, de Todd Phillips: o filme mais desconfortável do ano
Em “Joker” Arthur Fleck contorce-se dentro de um mundo que não é o seu. Marcado pelo fracasso e madrasta vida dos subúrbios de Gotham que o deixam podre. A sua vida é uma tragédia. Torce-se, apertado, oprimido. Ri-se, e cai pelo apelo do abismo. Quando o caos que o enrola, coagula e o eleva, transcende a algo superior, uma força, uma vontade que o corrompe.
Entre as luzes intermitentes e o preto da noite, a rir com tinta na cara, no metro, ao espelho. Reconhecemos as marcas do caráter de Joker. Dança de olhos fechados ao som do caos e destruição. Dança e flui onde antes se torcia e contorcia, apertado. Liberta-se da existência trágica de Arthur e ergue-se Joker.
O filme, escrito por Todd Phillips e Scott Silver, não é senão a arte desse caos que dá corpo à personagem. A própria confusão, as suas incongruências, tudo faz parte da natureza paradoxal do palhaço. É nas gargalhadas de Arthur que surge a liberdade face à repressão do comediante fracassado e doente, a piada de Gotham. O riso é a sua arma de libertação e afirmação. O ridículo que nada mais é que o absurdo, o caos, sem razão, certeza, moral ou regra. Qual é a sua natureza além da comédia?
Pelo riso e pela destruição, afirma-se e cria a sua realidade. Arthur transcende a Joker. Percebe-se a sombra da revolução existencial e vingança poderosa de quem não tem nada a perder.
“Taxi Driver” surge na memória, junto com “Fight Club”, numa referência ao niilismo, origem da transformação da personagem para um alter ego forte e poderoso, que no ambiente podre de Gotham, nasce com a natureza pervertida, mas ironicamente cómica.
É pela interpretação de Joaquin Phoenix e pela perspetiva de Todd Phillips (que também realizou o filme) que sentimos a essência de Joker. A essência da sua existência, tão verdadeira como todas as outras já contadas. Pois o que é Joker senão um paradoxo? A riqueza desta personagem complexa, feita arte em forma de puro cinema, é uma perspetiva realista e enfatiza a sua essência, carácter e originalidade. Tudo o resto, todo o contexto, serve apenas como túnel para uma perspetiva sobre o seu caráter. É o próprio filme que põe em causa a sua atmosfera, com o fim de afirmar a natureza da personagem.
Em “Joker”, Arthur lança-se ao negro e é consumido pelo caos que assombra Gotham, cuja identidade nasce na pele do palhaço. Joker é a gargalhada irónica de uma vida dramática, trágica, e que vai muito além do que está visto. Muito além do seu universo original.
Pela estética sedutora, com o cunho da fotografia de Lawrence Sher, e uma caracterização perfeita, um ritmo imersivo e uma banda sonora surpreendente, recebemos do filme a grande e ambiciosa verdade da personagem. Um neo-noir que explora em todas direções o estudo físico, mental e psíquico de uma personagem complexa.
No fim de “Joker”, Arthur continua connosco, com o riso, além do ecrã. Saímos e passeamos. Dançamos mentalmente com um sorriso nos lábios entre a possibilidade caótica do presente. O filme é de facto um estudo independente sobre uma personagem, um palhaço, uma comédia.
A piada, é que é apenas uma comédia e um estudo independente sobre uma personagem.
Crítica de Fausto Silva