José Antunes Ribeiro: o homem em quem Lobo Antunes se refugia
Um dia, há alguns anos, António Lobo Antunes apresentou-mo. Depois de uma longa conversa numa espécie de garagem onde escreve, quis que o conhecesse. Contou-me dele, do seu talento para ouvir, da sua incrível generosidade, do idealismo com que fundou a Ulmeiro, a Livraria Obelisco e a Assírio e Alvim. Acontece por vezes. Os domadores de palavras, de tanto andarem às voltas por entre letras e símbolos, sentem a necessidade de se surpreender com os outros, com a bondade de que fogem como o diabo da cruz – não há grandes escritores que se viciem no Bem, não há grandes livros sem que o Mal e as suas sombras estejam presentes.
O Mal que muitos apresentam como mistério, nada de mais falso. Porque desconfiamos quando nos acontecem coisas boas. E achamos natural quando são as más a bater-nos à porta. Tanto ouvimos dizer que devemos estar preparados para os sobressaltos e tragédias da vida que, quando o Mal chega, dizemos cá para nós “ora aí está. É ele, chegou”. Mas como não nos dizem que o Bem também é caixeiro-viajante crescemos sem estar preparados para o receber. E, quando chega, perguntamo-nos “o que estará para acontecer”. Na escola, as nossas crianças deviam aprender a desconfiar do Mal e a achar natural o Bem. Seria uma mudança civilizacional, uma maravilhosa revolução.
Então saberíamos reconhecer o José Antunes Ribeiro, o homem que me foi apresentado por Lobo Antunes. José que tanto fez sem esperar nada em troca, que nada teve em troca para lá do reconhecimento de uns poucos que lhe dizem, entre abraços, que jamais será esquecido no que foi. Que a livraria Ulmeiro, na Avenida do Uruguai, onde esteve mais de 50 anos, nunca deixará de ser recordada como espaço de encontro do pensamento e de gente que, de um modo ou de outro, influenciou a forma como refletimos ou escutamos – todos os inéditos e poemas de Agostinho da Silva foram editados por si e, em todos estes anos, António e outros grandes como ele repousaram na sua incrível tolerância e otimismo. A Ulmeiro foi uma casa para Zeca Afonso, Carlos Paredes, Léo Ferre, Mário Viegas, Hélia Correia e alguns outros com quem José partilhou também as suas sombras, os seus fracassos, as suas incredulidades.
É um grande homem, entre os que conheço o mais ignorado. Nasceu pobre e, como todos os outros nesses meados do século passado, condenado a sê-lo para sempre. No lugar de Alburitel fez a primária com Maria dos Anjos, professora casada com um médico de Chão das Maçãs, hoje Estação de Fátima, a quem deve o conhecimento da porta dos sonhos que nunca mais fecharia na sua vida.
O pai José, camponês e operário na CP, foi o seu apoio na juventude e a única marca afetiva nesse tempo de angústias. Morreu-lhe num acidente de automóvel às mãos de um imigrante que testava um qualquer último modelo, uma tragédia potenciada pela incredulidade: fora a primeira e última vez que o pai entrara num carro.
A mãe, Maria da Conceição, camponesa e analfabeta que era temente a Deus e, ao contrário do pai, opunha-se a todos os horizontes e sonhos que se pudessem abrir; uma mulher dura que jamais lhe ofereceu brinquedos ou beijos, mas que nunca deixou de trabalhar de sol a sol para que nada faltasse a si e aos irmãos.
Sabe-o bem.
No campo, na ida ao mercado para conseguir uns tostões, a fazer o que era preciso ser feito. Mulher profundamente religiosa, José recorda-se com nitidez das gélidas noites de inverno quando o levava à igreja da aldeia “dentro” do seu xaile.
A professora primária e a bondade do pai foram importantes, tanto como o internato no Colégio dos Dominicanos na Aldeia Nova. Sem eles, marcados pela culpa da Santa Inquisição, talvez não tivesse encontrado a maneira certa de impedir que a tal porta dos sonhos fechasse. Daí, apoiado pelos tios António e Jacinta, passou para o Colégio Nuno Álvares, em Tomar, onde se completou no homem que conheci e invejo.
O que António Lobo Antunes procura quando precisa de se libertar de si próprio. O que começou a ler a sério através das Bibliotecas Itinerantes da Gulbenkian, o que saiu de Tomar para Lisboa onde, sozinho, se refugiou nas OGMA de Alverca e com isso escapou à guerra colonial que mandava jovens do campo para a primeira linha de morte. O que se escondeu nos livros e nos amigos. O que se fascinou com os outros e se foi esquecendo de si próprio, o que decidiu ser sempre voluntarioso e pagou um alto preço por isso, o que acreditou nos outros mesmo nos que não mereciam, o que continua a combater pela sobrevivência da Ulmeiro, a livraria e editora que é uma parte de si. Uma parte de si que está doente, ligada à máquina, mas que José tenta salvar.
Quis-lhe contar deste homem bom. Que no ocaso da sua vida tem medo de ter medo, o que compreendo bem. Nunca conheci ninguém que não o tivesse. Fui amigo de pessoas que não falaram sob tortura. Privei com quem matou e viu morrer. Troquei conversa com gente que arriscou a vida em ruas da noite. Procurei sinais de coragem e encontrei-os. Mas todos partiram, todos partimos se nos prepararmos bem, para a dor com a serenidade conquistada em momentos de dúvida. Não, nunca conheci alguém que não precisasse da dúvida para construir certezas. Sim, os heróis que conheci tiveram mesmo medo de ter medo. Como tu, José.