Julgar a arte pelo artista
O caso é conhecido. No passado dia 3 estreou um documentário realizado por Dan Reed que está a causar sensação e a desencadear opiniões apaixonadas : Leaving Neverland. Não que seja necessário muito para que isso aconteça, nestes dias em que o mundo está transformado numa caixa de comentários. Mas o que Reed apresentou tinha tudo para que as emoções mais profundas se soltassem de onde cada vez menos parecem estar presas. Leaving Neverland é, aparentemente, um documentário sobre Michael Jackson; mas não é, como o próprio realizador afirmou: é um panfleto, uma denúncia. “Não é um filme sobre Michael”, disse o cineasta ao site Hollywood Reporter, “É um relato de abuso sexual, de como esse abuso acontece e como as suas consequências estão presentes na vida adulta das vítimas”. O que o documentário de quatro horas ilustra é difícil de ver: dois depoimentos de homens adultos (Wade Robson e James Safechuck) que revelam em detalhe os abusos que Jackson lhes terá imposto enquanto crianças – e a forma como essa memória afectou as suas vidas a partir daí.
Os rumores sobre a pedofilia de Jackson circulavam desde há muito, assim como outras excentricidades bem menos graves que o cantor parecia cultivar: o branqueamento da sua pele, o comportamento infantil, a sua relação com Elizabeth Taylor, a crença de que se entregava à criogenia numa tentativa desesperada de não envelhecer. Durante a sua vida e sobretudo a partir do momento em que alcançou fama planetária os tablóides nunca mais largaram as canelas de Jackson.
Mas agora é diferente. O ídolo está morto e não se pode defender. Estão cavadas as trincheiras entre os que acreditam nas graves acusações e os fiéis defensores de Jackson, muito organizados e que lhe dedicam uma lealdade canina. A estreia do documentário teve revistas policiais e cães à procura de bombas. Os herdeiros de Jackson processaram a produtora HBO em cem milhões de dólares ao mesmo tempo que produziam um contra-documentário.
Aqui chegamos ao que queria hoje conversar convosco. Entre as reacções mais imediatas ao documentário sobressaíram as muitas estações de rádio e televisão que a partir de agora se recusam a passar a música do homem. E naturalmente, como sempre acontece em tempos à beira do totalitarismo, ouviu-se de imediato a palavra tenebrosa: proibir.
As decisões de entidades privadas começam e acabam nessas entidades. Estão no seu direito, por mais erradas que possam estar. Mas proibir é perigoso porque universal. É uma imposição, o que deveria ser um último recurso. Neste caso cai numa armadilha comum na arte: confundir a obra com o artista. Eu sei que é um exercício difícil; mas tem que ser feito, sob pena de alienarmos muito do que muitos génios nos ofereceram. O facto de Leni Riefenstahl ter sido uma apoiante de um dos mais sórdidos ideais não retira um milímetro ao seu génio. O mesmo, no espectro oposto, se poderá aplicar a Eisenstein. Rimbaud foi traficante de armas, Pound defendeu convictamente o fascismo de Mussolini. Vamos proibi-los? Céline, simpatias nazis. Colette, anti-semita (apesar de casada com um judeu…). Picasso, um orgulhoso e notório misógino.
A arte é para ser apreciada, não para ser julgada em função das imperfeições dos seus autores: não é boa ou má em função das características dos artistas. Existem em planos separados embora sempre ligadas pela sua singularidade, que é dada pela presença da autoria. A arte vive do artista mas não tem de ser necessariamente uma literal interpretação biográfica. A vida está sempre lá, por definição. É uma mediação, uma verdade que é criada – é a isso que nos devemos ater. Se a música de Michael Jackson me irá soar ao mesmo caso sejam provadas as alegações de pedofilia? Não, nunca. De facto, já não soa, a audição foi maculada. Se as canções se tornaram piores? Impossível.
A arte precisa por vezes de se libertar dos seus autores. Mais ainda: de se libertar de quem os admira, como é sempre o nosso caso.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.