Juro que ia fazer uma declaração de amor

por Leonardo Cruz,    26 Novembro, 2022
Juro que ia fazer uma declaração de amor
Ilustração de Natacha Costa Pereira

Eu juro que ia fazer uma declaração de amor. Comecei até a escrevê-la. Inspirado numa crónica de Rubem Braga, “Visão”, em que o autor começa num desespero, continua num tormento e, mesmo, mesmo quando pensamos que vai acabar em desalento, surpreende o leitor com o vislumbre de “uma figura de mulher que nesse instante me fitou e sorriu com seus grandes olhos de azul límpido”, o que “foi como se, preso na penumbra da mesma cela eternamente, eu visse uma parede abrir-se sobre uma paisagem húmida e brilhante de todos os sonhos de luz”.

Como é óbvio, o que eu pretendia fazer estava muito aquém. Tentei iniciar com uma escrita meio soturna, poética, que surpreendesse os meus dois leitores habituais, levando-os a questionar: “o que é que este palhaço decidiu inventar agora?”; ou, melhor: “mas onde é que está a graça disto?”.

Começava assim:

Acordei naquele dia mais frio que a temperatura da rua. Dormi mal, acordei cansado. Banho, barba, café, o triângulo da rotina lenta, despida de vontade de enfrentar o mundo. No carro o rádio, no rádio o trânsito, no trânsito o carro. Círculos viciosos de velocidade travada, em contramão ao relógio.

No trabalho o telefone, no telefone as vozes, nas vozes a angústia, na angústia o trabalho. Quadrados perfis que me rodeiam, conversas cilíndricas de tédio elevado ao cubo.

Mas eis um rumor de calendário: quarta-feira. O ponto médio da semana, o dia dedicado a Mercúrio, deus romano da eloquência, do comércio e dos viajantes, mensageiro de Júpiter  o rei dos deuses. Data promovida a felicidade. Aquela em que eu a encontro.

A sugestão da sua imagem fez-me esquecer o mundo. Um silêncio inexistente tornou-se cúpula de alheamento sonhador. O tempo passava devagar, os ponteiros ansiosamente evitando o meio-dia, a hora em que estaria ali…”

Não estava ainda certo se estas descrições geométricas seriam geniais ou a coisa mais manhosa da história da literatura, mas isso agora não interessa.

A crónica não ia nem a um terço quando fui assoberbado pela notícia terrível. Não valia a pena escrever mais: aquele encontro era, afinal, desaconselhado, proibido, impossível. O ponto alto das minhas quartas-feiras morria naquele momento e, com ele, alguma felicidade em estar vivo.

Eu juro que nessa declaração de amor ia até evocar os clássicos, por exemplo, Saint-Exupéry, utilizando adulterações como “Se tu vens, por exemplo, à uma da tarde, desde as oito da manhã eu começarei a ser feliz”. Ou outros escritores menos clássicos, como Chagas Freitas, do género: “foda-se prometo falhar, mas nunca me deixes, prometo amar-te e devorar-te, merda são os dias em que não penetro as tuas chichas…”.

Porém, tudo deixou de fazer sentido num breve diagnóstico, dito sem preparação, imediato, cruel: “HIPERTENSÃO”.

“Hipertenso é o caralho! Meu nome agora é Zé Tranquilo, porra!” — era o que eu diria se fosse um gangster de favela do Rio de Janeiro, alguém que vive não temendo o fim, motivado por um quotidiano de sexo, drogas e rock’n’roll, maior que a vida, muito maior que a morte. No entanto, a minha resposta saiu sob a forma de envergonhada concordância: “Pois,  doutora, já na consulta de medicina de trabalho me haviam alertado que a tensão estava altita…”.

Hipertensão: palavra bruta. A única coisa hiper da minha vida tinha logo que ser a tensão arterial? Porque não outra característica, Deus-que-atribui-tamanho-aos-pénis?

Menos mau que há medicamentos, “um por dia durante um mês, para vermos como isto evolui”. O problema foi o que se seguiu. “Sabe o que temos de começar a fazer a sério, senhor Leonardo?”. Tentei adiar o ultimato até ao último segundo: “Temos, doutora?”. Mas foi inevitável o termo que destruiu a minha moral e, pior, a crónica como estava prevista. Em cinco letrinhas apenas, se escreve a palavra “morte”. Mas das palavras pequenas, há uma ainda mais horrível: DIETA. Já não ousei perguntar de quê, perdi-me no tácito triste imperativo: “fazer dieta”.

DDDDDDDDDDDDDDDDIIIIIIIIIIIIIIIIEEEEEEEEETTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAARRRRRRRRGGGGGGGHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH. Peço desculpa, tive aqui um minuto de descontrole.

Perante a sentença, não podia mentir. Seria enganador se escrevesse uma ode de encanto à generosa dose de cozido à portuguesa que é servida à quarta-feira no restaurante do António. Absurdo, neste contexto, fazer uma crónica em que simulava ansiedade por um encontro amoroso, mas com um prato de comida, indubitável ponto alto daquele dia. Martirizante, para dizer o mínimo, descrever as suculentas carnes de vaca e de porco, os maravilhosos enchidos, o molho proveniente da sua cozedura em que se prepara o arroz e se regam as couves, cenouras e batatas, sobretudo pelo desejo que provocaria (já provocou, maldito seja, que nem para mim sou bom!).

Adeus, comida gostosa, saborosa, farta e bem temperada, razão do meu viver, luz dos meus almoços, Disneylândia dos meus sonhos se o Mickey fosse feito de presunto e a Minnie de cerveja. Até sempre, carnes da cor das minhas saudosas faces rosadinhas felizes, venha de lá esse bife dum pássaro qualquer, pálido como eu a tentar enfiá-lo goela abaixo.

Olá, porca miséria de peixe grelhado e legumes, cujo nome até faz lembrar facas em francês — “les gumes” — a esventrarem-me a garganta. Vai-te embora pão caseiro, anda cá alface. Tchau vinho tinto, como está, água natural? Leite creme queimado? Não sei de que falam, comento com esta maçã farinhenta que como entre refeições para enganar o apetite, como quem alivia sessões de tortura com uma chicotada.

Sal, obrigado por tudo.

Só os clássicos me apaziguam. Penso neles e na minha situação. Quase ouço Jobim cantar “brócolo não tem fim, a feijoada sim”, despeço-me de centenas de iguarias nacionais e estrangeiras e, sobretudo, do meu querido Cozido à Portuguesa, inspirado no seu patrício Adeus, de O’Neill: nesta curva tão terna e lancinante, que vai ser que já é o teu desaparecimento, digo-te adeus e como um adolescente, tropeço de fome por ti.

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