‘Kedi’: a dimensão felina de Istambul

por Tiago Vieira da Silva,    1 Fevereiro, 2018
‘Kedi’: a dimensão felina de Istambul

Kedi//Gatos, documentário que estreou no Istanbul Independent Film Festival em fevereiro de 2016, mas que só chegou aos cinemas portugueses em janeiro de 2018, não é apenas um filme para cat lovers, ainda que o olhar da realizadora, Ceyda Torun, evidencie assumidamente uma grande paixão pelos felinos que, ao contrário do que poderia suceder, não compromete o resultado final. Essa paixão, que se estende aos habitantes de Istambul entrevistados, independentemente de nós a partilharmos ou não, é o que move esta história, e, subsequentemente, é o que permite ao espectador confrontar-se com outros temas cruciais, que se desvendam nas filmagens da cidade de Istambul (dos planos aéreos aos close-ups dos felinos) e do dia-a-dia dos habitantes, os seus diferentes ofícios, os seus costumes, hábitos, crenças. E os gatos são um elemento omnipresente, integrando-se no quotidiano destas pessoas, que os acolhem, os alimentam, os acarinham, atribuindo-lhes um papel fundamental na sua vida.

Este gato tem uma personalidade muito vincada e é diferente dos outros gatos, ouvimos nós recorrentemente ao longo do filme. As pessoas que acolhem ou alimentam determinado gato atribuem-lhe sempre essa peculiaridade, orgulhosas – desde Psikopat, a gata dominante que não é submissa perante nenhum outro gato, nem mesmo perante as pessoas, a Duman, o gato de paladar requintado que possui, segundo os funcionários do restaurante que o alimentam, uma «aparência de aristocrata misturada com o espírito de um rapaz de rua». É a partir dessa comum premissa do gato de personalidade singular, muito vincada, indissociável da sua aura mística que remonta aos tempos mais antigos, que nós somos levados a conhecer as razões do deslumbramento destas pessoas; quase todas as que são entrevistadas enaltecem os gatos, não só como um símbolo cultural da cidade, mas pelo papel importante que estes tiveram em determinado momento na sua vida. E, quer acreditemos ou não nas histórias contadas – como a história do pescador que alegou que, depois de o seu barco ter afundado e ter perdido a sua fonte de sustento, um gato o conduziu a uma carteira que tinha dinheiro suficiente para ele recomeçar a sua vida –, quer não nos identifiquemos ou nos revejamos na relação destas pessoas com os gatos, Kedi surpreenderá pela intimidade com que penetra nesta “dimensão felina” do imaginário urbano de Istambul, e também pela forma como somos levados a conhecer as vidas destas pessoas tão distintas a partir da sua relação com os gatos.

Um dos notáveis triunfos de Kedi é o facto de o filme não ousar uma tentativa de humanização destes animais, o que poderia culminar num resultado pouco credível, até mesmo duvidoso; o filme não pretende corroborar a ideia que muitos dos entrevistados têm do gato como um ser assumidamente sensível, até mesmo altruísta, a partir das experiências pessoais relatadas por cada um. A indiferença do gato, o seu instinto selvagem, a sua indomabilidade inata («Alguns são tão pomposos como uma senhora que não gosta de ser incomodada nem com um “olá”»), são assumidas como características caricatas dos felinos, que, a partir do seu instinto básico de sobrevivência, construíram com os humanos a relação presente. «De certa forma, os animais de rua são o nosso símbolo cultural. Istambul e os gatos…tantos gatos pelas ruas de uma cidade. Eles tornaram-se um símbolo distinto de Istambul», diz uma das pessoas entrevistadas.

Os felinos parecem estar realmente presentes em todos os cantos de Istambul – não é apenas a sua presença física, mas também a sua presença no imaginário, como vemos pela manifestação de arte urbana – a pintura mural de um gato – que é filmada a determinado momento.  Kedi conduz-nos numa visita pelos vários lugares da cidade: as ruas de maior movimento, as vielas, os becos, as docas, os resíduos selvagens e abandonados que pontuam a cidade, até mesmo pelos telhados, fazendo uso recorrente da câmara subjetiva (quando necessário, ao nível do chão) a fim de assumir a perspetiva felina. E, ainda que alguns considerem que Kedi possui como principais personagens os gatos – incidindo especificamente em sete deles –, o filme assume-se simultaneamente um relevante retrato social que permite ao espectador conhecer mais intimamente os habitantes e os costumes de Istambul a partir desta relação tão ancestral entre os seres humanos e os felinos.

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