“La Maman et la Putain”, de Jean Eustache: o verdadeiro triângulo da tristeza, do amor e da vida
Este artigo pode conter spoilers.
Será por certo o filme mais cool da saison, aquele que em breve ninguém desejará admitir não ter visto. A obra inigualável de Jean Eustache, com a ménage a trois de Jean-Pierre Leáud, Françoise Lebrun e Bernadette Lafont é um filme tão livre como o amor. E que ensina até a fazer uma cama em dois segundos… Vimos “La Maman et la Putain”, ou em português “A Mãe e a Puta”, em Bolonha, no festival Il Cinema Ritrovato e escutámos Régine Viel, da Les Filmes du Losange, falar do magnífico restauro em 4K. A saber que este filme-evento antecede a reposição integral da obra de Eustache, ao longo deste ano e no próximo, bem como o lançamento em DVD/BR.
A chegada de “La Maman et la Putain” às salas de cinema configura, muito provavelmente, um dos eventos cinematográficos do ano. Eventualmente, perguntar-se-á: porquê toda esta atenção em redor de uma fita a preto e branco, do longínquo ano de 1973, ainda antes da nossa revolução, com quase 4 horas (na verdade, 3h40)? Mais do que nunca é devida a esta Mãe e a Puta a inigualável possibilidade de (re)descoberta. Ainda por cima numa altura em que o cinema é asfixiado por uma certa globalização mediática (Netflixzação, streamingzação, chame-se o que se quiser), talvez o regresso a um “something completely diferent” possa acordar-nos da letargia que produz um certo nivelamento de gostos. Porque é precisamente isso que “A Mãe e a Puta” não é. É sim, uma deliciosa obra prima, talvez o filme mais bonito sobre o nascimento do amor.
Há algo de mítico nesta longa experiência fílmica, bastante longa, mas que se vê num ápice. Um filme constituído basicamente por um trio de pessoas a conversar. À vez, ou em grupo. E do que falam? Sobretudo do que fazer com a sua liberdade — seja a liberdade sexual, seja da liberdade de abertura para os outros. E celebrando um posicionamento contracorrente. Ora, como se percebe, tais qualidades arriscavam-se a não ser bem compreendidas. Desde logo, na sua apresentação oficial, em 1973, no festival de Cannes, onde causaram escândalo. Mesmo assim, seria o júri presidido pela consagrada Ingrid Bergman (aliás, a única mulher no júri), a atribuir o Grand Prix du Jury a “La Maman et la Putain” — o filme haveria de ganhar ainda o prémio Fipresci — embora a Palma, essa, fosse para “The Hireling, de Alan Bridges, ex-aequo com “The Scarecrow” de Jerry Schatzberg. Enfim, mas ainda hoje as injustiças acontecem, como se sabe.
“La Maman et la Putain” surge agora, de novo, nas salas de cinema, com o hype inegável (e merecido), depois de ter estado afastado durante várias décadas. E, sublinhe-se, numa irrepreensível versão restaurada, graças ao produtor Charles Gillibert (GC Cinéma), a partir de uma integral cópia de 35mm. E com a vontade de voltar a tornar-se no verdadeiro filme de culto que merece ser. Já que tem a ousadia de fazer um contraponto à nouvelle vague, nesses primeiros anos da década de 70, em plena ressaca de Maio de 68, embora com capacidade de conseguir até olhar para o nosso presente.
A nossa redescoberta de La Putain, em sala e em ótimas condições, não poderia ter acontecido em lugar mais adequado. Foi no Il Cinema Ritrovato, cuja 36ª edição decorreu em Bolonha, no mês passado e de que fizemos cobertura. Já depois da exibição em Cannes este ano, integrado na secção Cannes Classics. Precisamente 49 anos depois da sua estreia.
Foi aí, numa sessão que teve a presença de Régine Vial, a responsável da mítica produtora Les Filmes do Losange, a companhia fundada por Barber Schroeder e Éric Rohmer no início dos anos 60, responsável pela sua filmografia e outros como Jacques Rivette, Michael Haneke, Lars von Trier, Thomas Vinterberg, etc. Uma das informações que partilhou, com inegável orgulho, foi o resultado de bilheteira do filme de Eustache, na semana de lançamento em Paris, a 8 de Junho, com 75 cópias em França, acabando por registar nesses primeiros dias, nas salas Odeon MK2, no Quartier Latin, em Paris, mais espectadores que o novo “Top Gun” e o novo “Jurassic Park”. É obra, não é?! Dados, de resto, confirmados pela exibição da folha de registos desse dia. Algo que bem poderia acontecer também por cá…
É claro que, ao longo dos anos, “A Mãe e a Puta” foi pouco visto. Beneficiou de um restauro em 1992 e passou no canal Arte a propósito da morte de Bernadette Lafont, em 2013. E apenas em escassas projecções em 35mm. Régine Vial confirmou ainda que este é um trabalho que procurou respeitar o look original do filme. Incluindo mesmo o grão dos 16mm originais. E que a fonte principal e base do restauro foi a versão integral de 1973, incluindo mesmo uma cena curiosa cortada por Eustache numa reposição feita em 1982. Trata-se do momento em que Alexandre e Marie vão ao cinema, ver “Les Idoles”, de Marc’o, um filme de 1968, precisamente com montagem… do próprio Eustache, que se suicidará em 1981. Só depois veio o culto.
Aliás, “A Mãe e a Puta” surge num contexto histórico favorável, pois os filmes de Jean Eustache beneficiavam até à data de uma recepção favorável. Não só do público, como também da crítica. Só com um detalhe: ninguém o queria financiar. Eustache recorda, na notas do filme, que só Godard o ajudou, com algum dinheiro que lhe sobrara de um outro filme. De certa forma, foi também uma raiva contra nesse estado de coisas que levou Eustache a escrever o guião (ou melhor, os diálogos, ou melhor, os monólogos) e tendo até o cineasta pensado num filme para cinco ou seis horas.
É até essa qualidade de “cinema de palavra” que poderá tocar muitos que não conheceram esta “ménage a trois” de Jean Eustache, com prestações extremosas de Jean-Pierre Léaud, Françoise Lebrun (aqui no seu primeiro papel) e ainda Bernadette Lafont. Lebrun que vimos no ano passado, de braço dado com Dario Argento na apresentação de “Vortex”, de Gaspard Noé (ele próprio um dos grandes entusiastas do lançamento recente do filme). Este é também um filme que nos dá música, não de uma banda sonora, mas directamente do pick up que Léaud na casa da companheira Marie (Lafont) onde ouvimos a nostalgia das chansons, sejam as fortifications populares de Fréhat, como a modernidade dos… Deep Purple ou os Rolling Stones que Alexandre evoca. E é aí que até nos ensina a fazer camas em dois segundos, quando Veronika se deixa cair no colchão esticando para os lados ambas as abas do lençol.
O filme acompanha o ritmo de cada conversa. Embora, ao contrário do que se possa pensar, cada palavra corresponde ao que vem escrito no guião. Ou seja, não se trata de um filme de improvisação, por certo, mais ao estilo de Jacques Rivette. Num ritmo que celebra a liberdade ociosa do dandy melancólico, anarquista e libertário de Alexandre, que lê Proust e cita Bataille, representado por Jean-Pierre Léaud. Um Alexandre que nos confunde com o Antoine (Doinel) de Truffaut.
Alexandre que vive com Marie (Lafont), uma mulher que gere uma loja de roupa, mas que deambula, como um drageur sedutor, à procura de raparigas, pelos cafés de Saint Germain. Ele que vai ao Café Flore porque não tem dinheiro. Ou ao Deux Magots, embora nem tanto ao La Rotonde ou ao La Coupole. Mas também não é café que bebe. Por ali vai engolindo os seus whiskies. Ele lê Proust e conversa. Não “procura do tempo perdido”, saboreia o momento presente, já que este é um filme sem história, suspenso no tempo (e, sim, também não há o tempo reencontrado).
Ele encontrará na enfermeira Veronika o seu match. Ela, uma mulher vivida, para quem o sexo é uma coisa natural. E que assume que gosta de “baiser das le vide, baiser comme une pute”. Ela a ela, quando estão na cama, perguntará: “Queres fazer amor como: com ternura ou de forma mais violenta?”. Digamos que nunca se falou de amor (ou de sexo) de forma tão livre. Ou nessa disponibilidade e sinceridade de se ouvir e de procurar o outro. É curiosa até a forma como a personagem de Alexandre gradualmente cederá espaço à enfermeira Veronika, que celebra toda a naturalidade do amor. É ela que acaba por se afirmar como a figura central do filme. E que, de certa forma, lhe confere o significado definitivo no monólogo final que adquire mesmo a dimensão de uma tragédia clássica que evoca o passado, como um vestígio de uma civilização antiga. “A Mãe e a Puta” parece um conto moral, mesmo sem ser Rohmer.
Filmado entre Montparnasse e Saint Germain des Près, durante sete semanas, entre junho e julho de 1972, sempre com um respeito absoluto pelo texto. A recusa da improvisação e a crença no texto como uma escolha estética. Era assim a beleza da escrita de amor de Eustache, apostando num naturalismo cinematográfico escrito. Porque é mesmo o cinema que passa por “A Mãe e a Puta”. Um cinema de câmara, da palavra. E que “nos fala”. Aliás, num estilo usado também por John Cassavetes. Eustache filma de acordo com o ritmo das palavras, da acção, embora sem abusar dos planos sequência. Sendo certo que optava “pela contraposição de tudo o que de dizia e pensava na época”. Aliás, o próprio título do filme esteve para ser “Du pan et des Rolls” (“O pão e os Rolls Royce”).
No final, Veronika acalenta o sonho de um homem que vem e lhe faz um filho. E é dessa forma que assistimos ao nascimento do amor. Em toda a sua liberdade, como algo de absolutamente novo. Ora, é também nestas contradições temos o aproximação a Jean Renoir. Às suas regras do jogo que são para quebrar. Apesar de contar já atrás com um sucesso assinalável, Eustache partiu para este filme como se fosse o seu primeiro. E é isso mesmo que parece. Escreveu um filme para os actores que o iriam interpretar, “sem um segundo de improvisação”. E percebemos como contorna todos os clichês da actividade ao fazer um filme de quase quatro horas e baseado apenas em diálogos — na altura, as excepções eram para as grandes produções históricas. Mas porque não para as muito pequenas produções, questionou ele numa entrevista de 1973.
Então quem é a mamã, quem é a puta? Será Veronika, ao mesmo tempo a puta que quer ser a mãe. “Pura eu?”, questionará Veronike. “Estou completamente podre!” Será a França? A pátria puta? A França cansada depois da Revolução de 1789 e de Maio de 68. Sim, este é um filme desavergonhado, com uma personagem que não tem vergonha de falar de Tampax, de dizer merdique ou de foder com quem for. Mas acaba por assumir que acalenta o sonho de um homem que vem e lhe faz um filho. Será este um filme que reinventa o amor? Provavelmente. Pelo menos, que coloca o amor no seu devido lugar.