Lana del Rey e o medo do esquecimento
No seu recente e nono álbum, Did You Know That There’s a Tunnel Under Ocean Blvd, Lana del Rey reflete, uma vez mais, sobre o amor, o sentido da vida e da morte, o peso da fama e se o legado que deixará, será o suficiente para a eternizar no mundo artístico. É um álbum forte, conciso e brilhante, talvez o seu magnum opus.
No single, com o mesmo nome do álbum, Did You Know That There’s a Tunnel Under Ocean Blvd, Lana mescla o custo da fama e o medo do esquecimento num (im)perfeito caos emocional, transformando a sua crise existencial num belo poema (1), que será aqui analisado.
No início da canção, podemos ouvir uma longa expiração de Lana, como se estivesse a preparar emocionalmente, antes de fazer a pergunta retórica: “Did You Know That There’s a Tunnel Under Ocean Blvd?”. Lana del Rey introduz aqui o seu tópico discursivo ao ouvinte: o seu esquecimento, por parte do público, através da metáfora de um antigo e preterido túnel em Long Beach, Jergins Tunnel (2), que, em tempos, não só era belo e magnífico, com os seus irreverentes azulejos, como também seria útil para os transeuntes que quisessem chegar à praia, por via subterrânea. Logo de seguida, confessa que sente que o seu corpo contaminou e estragou a sua alma (como se o corpo ditasse a qualidade do talento): “I can’t help but feel somewhat like my body marred my soul”, e, tal como o túnel, será “encerrada” por duas paredes, “Handmade beauty sealed up by two man-made walls”. Estes versos são mais ricos do que um primeiro olhar ou ouvido poderão interpretar, pois existe neles a certeza da crueldade do envelhecimento para uma mulher famosa. Lana sabe que está a envelhecer, algo terrível aos olhos da indústria musical e entusiasmante (no mau sentido) para os tabloids e redes sociais, pois a imagem física de uma cantora, infelizmente, será sempre mais valorizada e escrutinada do que o seu talento. Depois do escrutínio, vem o silêncio, por aparentemente não restar mais nada para ser contemplado. Nestes versos, vemos então sugerido que o pico da sua fama começou a cessar e, em breve, será esquecida e desprezada por quem outrora tanto a admirou (confundindo, muitas vezes, a beleza física da artista com a sua arte).
Nos pré-refrões, Lana del Rey enfatiza ainda mais as interrogações retóricas, perguntando, no seu característico tom melancólico, quando será a sua vez de ser “encerrada” ao público, tal como o velho túnel: “When’s it gonna be my turn?”; e apela ao seu auditório para não a esquecer, deixando implícita a importância do público para o sucesso do artista. Nota-se, com efeito, desespero e insegurança nas constantes repetições do pedido, “Don’t forget me”, ao longo da música, depois intensificados em outras frases imperativas e apelativas, que completam o refrão: “Open me up”, “Tell me you you like it”, “tell me you like me”, “Fuck me to death” e “Love me until I love myself”. No meio destas súplicas, surge a dura e assombrosa lembrança de que existe um túnel debaixo de Ocean Blv, como se Lana se tivesse fundido a ele, e agora são uma única entidade, que espera ser novamente valorizada aos olhos daqueles que por ela passam e nada veem. Não posso, contudo, deixar de mencionar que, nestas frases, há um pequeno desvio do geral para o particular. Se o auditório a atingir seria um público mais abrangente (os “fãs” da cantora), aqui também se poderá perceber a existência de um auditório particular, estritamente particular, talvez um interesse romântico, que também não pode, não deve esquecer Lana, valorizando-lhe a beleza interior e amando-a até ela ter capacidade de se amar.
A compositora vive, claramente, angustiada pela solidão iminente e pela incerteza do seu valor como pessoa e artista. Aliás, essa angústia é novamente visível, quando, a meio da canção, Lana canta que não consegue florescer e crescer como cantora/poeta, “Leanin’ in my back, whisperin’ in my ear/ ‘Come on, baby, you can thrive (3)’/ But I can’t”. Atrevo-me a ler nas entrelinhas e sugerir que as constantes e duras críticas direcionadas a Lana, principalmente no passado, interferiram na imagem negativa que alguns têm pela cantora, contribuindo, nestes tempos estranhos, para ameaças de “cancelamento” e para a sua falta de confiança.
Também nesta canção, a cantora-compositora faz uma curiosa referência ao clássico, Hotel California, da banda Eagles. Revela que, num espaço desconhecido, existe uma jovem que a canta, não por prazer, mas porque é obrigada a fazê-lo, pois vive preservada num mundo negativo, do qual só alguns tiveram a sorte de encontrar a porta de saída:
“There’s a girl who sings ‘Hotel California’/ Not because she loves the notes or sounds that sound like Florida/ It’s because she’s in a world, preserved, only a few have found the door/ It’s like Camarillo, only silver mirrors, running down the corridor.”
Del Rey, Lana (2023). “Did You Know That There’s a Tunnel Under Ocean Blvd” In Did You Know That There’s a Tunnel Under Ocean Blvd. Interscope e Polydor Records.
Para quem desconhece a icónica Hotel California, a canção é uma espécie de aviso para o lado sombrio do sonho americano. Portanto, a utopia do sonho americano cantada, por Lana del Rey, em muitos dos seus álbuns, parece estar agora a ser desconstruída e destruída pela cantora. Talvez Lana já não veja os EUA com os mesmos olhos jovens e esperançosos; talvez Lana confunda aqui o país com a sua indústria musical, que castra muitas vezes a veia eclética de músicos, como ela, temendo que estes deixem de trazer lucro às editoras, devido ao possível desinteresse do público; talvez Lana se sinta desvalorizada pelos EUA (caracterizado muitas vezes como o “centro do mundo”), contribuindo paulatinamente para o seu desaparecimento. É de facto uma estrofe curiosa, que poderá dar aso a muitas interpretações.
As interrogações e incertezas de Lana del Rey, durante toda a letra/poema, vão ao encontro das preocupações de outros artistas das mais variadas formas de arte. É uma problemática geral, que destabiliza muitos indivíduos: o medo de ser esquecido e de não conseguir atingir a imortalidade, mesmo já depois de morto.
Ora o que nos distingue dos outros animais é a nossa insatisfação enquanto mortais. O pensamento, a criação, a perceção, etc, devem ser desejados, indagados e glorificados pelos indivíduos. Quem se sente confortável em simplesmente existir, vive e morre como um animal, como diriam Heraclito ou Sócrates, por exemplo.
Por isso, vemos, sem grandes surpresas, nesta canção de Lana del Rey (com bacharelato em Metafísica e Filosofia), preocupações humanas que a filósofa Hannah Arendt — reproduzindo a linha dominante do pensamento filosófico ocidental — analisa na obra A Condição Humana (4). Segundo Arendt, o desejo da imortalidade, através da fama, é algo inerente ao ser humano desde que este tem consciência da sua existência e de que é mortal. Por essa razão, produz para que a sua existência não seja vã, para que seja imortalizado através dos seus feitos, num cosmos onde tudo é imortal, menos ele (Arendt, 1998: 19).
A arte e a cultura, tal como são pensadas pelo Ocidente, são assim formas (individuais e/ ou coletivas) de atingir a imortalidade, na medida em que permitem ao ser humano ultrapassar os limites de uma vida concentrada entre o seu nascimento e a sua morte, ou a passagem dos seus dias a partir do nada.
A Fama, apesar de útil para eternizar um indivíduo ou um povo, é um pau de dois bicos, é “simultaneamente veneno e remédio” (Tunhas, 2011: 227 (5)), é, para a antiguidade clássica, uma deusa ambígua. A Fama pode solidificar, modificar (para melhor ou pior), ou destruir por completo aqueles que tanto a procuram para tornar o seu engenho perene. E a Fama, no século XXI, é igualmente magnífica, excitante, intermitente, instável, passageira e até mesmo perigosa, construída e sustentada maioritariamente pelos media e pela social media, que num dia endeusam e no outro diabolizam a imagem dos seus visados, buscando lucro no pathos do público.
Lana del Rey tem consciência da ambiguidade da fama. Por isso, teme que a sua mudança física, novas sonoridades e temas (que apresenta nas novas canções) e a consequência da controvérsia — muitas vezes associada à sua imagem, nos tabloids e nas redes sociais — provoquem o desinteresse do público, fazendo com que a sua notoriedade desapareça antes de se conseguir imortalizar através da sua obra. Mas, como é o medo que move os corajosos, Lana continua teimosa com a visão de tornar a sua vida numa obra de arte (como tantas vezes disse, em várias entrevistas) e decide correr o risco, não se curvando às tendências que vão surgindo na música mainstream, para se manter relevante, e reinventando-se sem nunca perder a base da estética que tão bem a define.
Notas e citações:
1 – Lana del Rey, em várias entrevistas, afirma que Did You Know That There’s a Tunnel Under Ocean Blvd é o seu álbum mais diarístico, por isso, iremos interpretar as reflexões e interrogações, deste single, como pessoais.
2 – Jergins Tunnel foi criado por Alexander Beck, em 1927, e encerrado ao público, por motivos de segurança, nos anos 60.
3 – Em algumas referências à letra desta canção, na internet, “thrive” surge substituída por “drive”. Não encontrando a letra oficial, optei pela palavra “thrive”, pois é a palavra que escuto nesta parte da música.
4 – Arendt, Hannah (1958). The Human Condition. Chicago: The University of Chicago Press.
5 – Tunhas, Paulo (2011). “Fama e Tempo”. in Torres, Eduardo Cintra; Zúquete, José Pedro. A vida como um filme: Fama e celebridade no século XXI. Lisboa: Texto Editora.