Lars von Trier, Banksy e Bukowski entram num bar
“The urge to destroy, is also a creative urge.” Esta frase tantas vezes atribuída erradamente a Pablo Picasso e que foi, na realidade, proferida por Mikhail Bakunin, intelectual russo e um dos fundadores do anarquismo. A mesma ficou recentemente em voga por ter sido a descrição que acompanhou um vídeo no instagram de Banksy, onde o anónimo artista britânico explicava o processo de instalação de uma trituradora de papel na sua obra Girl with a Balloon, destruída num leilão da Sotheby’s em Londres.
Há no entanto uma questão que importa à reflexão aqui pretendida. A obra, agora parcialmente destruída e renomeada de Love is in the Bin, tornou-se mais ou menos valiosa que antes de ser colocada em leilão? A intervenção/encenação artística fará com que esta passe a ser das obras mais conhecidas da história da arte contemporânea, além da mais popular de Banksy. Será então a destruição um acto de criação artística (reforçado este facto pela renomeação da obra)?
No último filme de Lars von Trier, amado e odiado como poucos no cinema actual (talvez só Gaspar Noé lhe rivalize neste campo), o cineasta dinamarquês substitui-se por um serial killer interpretado por Matt Dillon. A dar os seus “primeiros passos” na “arte do homicídio”, o assassino, que é também arquitecto, ao mesmo tempo que vai congelando as suas vítimas em posições grotescas, ao estilo dos irmãos Chapman (Jake e Dinos), que mutilavam manequins de crianças e adultos utilizando o grotesto anatómico e pornográfico para crítica social, política ou religiosa – uma diferente abordagem de Banksy, se quisermos, mas com os mesmos fins. A personagem de Matt Dillon, tal como o cineasta, debate-se com uma constante dúvida, inquietação e insegurança na construção da sua própria casa: reformula constantemente as plantas e os materiais a usar na construção, que vai deitando abaixo para posteriormente reconstruir.
A tríade “criativa” formada por um cineasta, serial killer e arquitecto, trazida por Lars, é apenas mais um desafio gratuito do dinamarquês ao convencionalismo ou tem, efectivamente, lógica? Todos agem com método, que vão aperfeiçoando ao longo dos tempos, mas também têm as suas dúvidas e estão sujeitos ao escrutínio público a diferentes níveis – a crítica. Quem cria duvidará sempre de si, caso contrário estamos perante um imitador e não um criador. Só um imitador, que age com a segurança de um método que não é o seu, poderá ter a desfaçatez e o atrevimento necessários para nunca duvidar de si. Apesar do estilo provocatório, conseguimos estabelecer o paralelo entre o arquitecto que quer construir uma casa recorrendo a corpos como materiais, e um cineasta que representa isso para nos falar sobre o seu processo criativo e que acaba por utilizar (numa espécie de inception) também esses mesmos corpos para representar o seu próprio processo na criação de Cinema.
O que é então a “arte”? E permitirá a mesma o uso da violência ou da destruição como formas de criação de percepções? De Saló, Irreversible ou Cannibal Holocaust até filmes como The Bunny Game, A Serbian Film ou Human Centipede, são vários e distintos os tipos de violência simulada utilizados no Cinema com a criação de arte como fim último. Em 1929, Luís Buñuel e Salvador Dalì escreveram Un Chien Andalou (Um Cão Andaluz). Um dos outros títulos propostos (nenhum deles nada que ver com a curta-metragem em si) foi Prohibido Asomarse al Interior, algo como “Proibido inclinar-se para o interior”, referindo-se, por contraponto, aos sinais que vemos em alguns transportes, como por exemplo os comboios, de proibição de nos inclinarmos para o exterior face ao perigo, quando em andamento. Tratar-se-ia provavelmente de um título certeiro para o filme, visto que nele se olha para o subconsciente e fantasmas que habitam no interior. Nesta sequência de imagens oníricas que compõem esta obra surrealista, numa delas um olho de uma mulher é cortado por uma navalha, ao mesmo tempo em que nos é apresentada a imagem de uma lua a passar pela lua.
O que muda a nossa opinião entre uma das obras cinematográficas referidas e esta última surrealista de Buñuel e Dalí? Qual é a diferença entre a simulação de violência de forma pura, dura e crua, e a violência sob pretexto surrealista e metafórico? Isto é, o que nos faz qualificar uma como arte e negar a existência das outras? A sua origem onírica? Saber que não é violência enquanto tal mas sim enquanto forma de representar uma outra ideia? Se essa ideia não for conseguida em nenhuma das formas, perderão as duas o seu sentido nobre de busca de significado e por conseguinte a classificação enquanto arte?
A discussão pode levar-nos até outras formas de arte ou de criação de conteúdo. Tomemos como exemplo Robert Mapplethorpe, que tanta tinta fez correr o ano passado devido à sua exposição em Serralves. Serão as suas fotos de nus, de conteúdo sexual provocatório, arte? Será a escrita realista, literal e visceral de Bukowski, onde a vida do autor, repleta de álcool, sexo, prostitutas e tabaco é o fomento criativo, arte? E no humor, qual a barreira? Porque é que a desconstrução de um facto ou de uma ideia pré-concebida por parte de alguém como Rui Sinel de Cordes é alvo de censura? Numa sociedade que vive com liberdade de expressão (nas suas várias formas) o conceito de “mau gosto”, algo tão pessoal, não pode nem deve nunca ser medidor de aceitação a todo o resto. Termos criado a rótulo/classificação de humor negro para quando são abordados assuntos mais “sensíveis” é já de si a verdadeira forma de estigmatização e de preconceito que devia ser mais evitada que o próprio conteúdo que esta visa classificar e são esses mesmos rótulos que separam por vezes a arte da ofensa, quando se trata da mesma coisa – e não há mal nenhum nisso. Mas se assim é, voltemos ao início: o intuito da criação artística e o seu fim é o mais importante ou o objecto alvo da transformação com esse fim? Na obra de Banksy, terá mais valor a obra inicial ou a obra destruída? E será efectivamente a obra destruída, arte?