Lars von Trier, Banksy e Bukowski entram num bar

por João Estróia Vieira,    5 Fevereiro, 2019
Lars von Trier, Banksy e Bukowski entram num bar
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“The urge to destroy, is also a creative urge.” Esta frase tantas vezes atribuída erradamente a Pablo Picasso e que foi, na realidade, proferida por Mikhail Bakunin, intelectual russo e um dos fundadores do anarquismo. A mesma ficou recentemente em voga por ter sido a descrição que acompanhou um vídeo no instagram de Banksy, onde o anónimo artista britânico explicava o processo de instalação de uma trituradora de papel na sua obra Girl with a Balloon, destruída num leilão da Sotheby’s em Londres.

Há no entanto uma questão que importa à reflexão aqui pretendida. A obra, agora parcialmente destruída e renomeada de Love is in the Bin, tornou-se mais ou menos valiosa que antes de ser colocada em leilão? A intervenção/encenação artística fará com que esta passe a ser das obras mais conhecidas da história da arte contemporânea, além da mais popular de Banksy. Será então a destruição um acto de criação artística (reforçado este facto pela renomeação da obra)?

No último filme de Lars von Trier, amado e odiado como poucos no cinema actual (talvez só Gaspar Noé lhe rivalize neste campo), o cineasta dinamarquês substitui-se por um serial killer interpretado por Matt Dillon. A dar os seus “primeiros passos” na “arte do homicídio”, o assassino, que é também arquitecto, ao mesmo tempo que vai congelando as suas vítimas em posições grotescas, ao estilo dos irmãos Chapman (Jake e Dinos), que mutilavam manequins de crianças e adultos utilizando o grotesto anatómico e pornográfico para crítica social, política ou religiosa – uma diferente abordagem de Banksy, se quisermos, mas com os mesmos fins. A personagem de Matt Dillon, tal como o cineasta, debate-se com uma constante dúvida, inquietação e insegurança na construção da sua própria casa: reformula constantemente as plantas e os materiais a usar na construção, que vai deitando abaixo para posteriormente reconstruir.

A tríade “criativa” formada por um cineasta, serial killer e arquitecto, trazida por Lars, é apenas mais um desafio gratuito do dinamarquês ao convencionalismo ou tem, efectivamente, lógica? Todos agem com método, que vão aperfeiçoando ao longo dos tempos, mas também têm as suas dúvidas e estão sujeitos ao escrutínio público a diferentes níveis – a crítica. Quem cria duvidará sempre de si, caso contrário estamos perante um imitador e não um criador. Só um imitador, que age com a segurança de um método que não é o seu, poderá ter a desfaçatez e o atrevimento necessários para nunca duvidar de si. Apesar do estilo provocatório, conseguimos estabelecer o paralelo entre o arquitecto que quer construir uma casa recorrendo a corpos como materiais, e um cineasta que representa isso para nos falar sobre o seu processo criativo e que acaba por utilizar (numa espécie de inception) também esses mesmos corpos para representar o seu próprio processo na criação de Cinema.

O que é então a “arte”? E permitirá a mesma o uso da violência ou da destruição como formas de criação de percepções? De Saló, Irreversible ou Cannibal Holocaust até filmes como The Bunny GameA Serbian Film ou Human Centipede, são vários e distintos os tipos de violência simulada utilizados no Cinema com a criação de arte como fim último. Em 1929, Luís Buñuel e Salvador Dalì escreveram Un Chien Andalou (Um Cão Andaluz). Um dos outros títulos propostos (nenhum deles nada que ver com a curta-metragem em si) foi Prohibido Asomarse al Interior, algo como “Proibido inclinar-se para o interior”, referindo-se, por contraponto, aos sinais que vemos em alguns transportes, como por exemplo os comboios, de proibição de nos inclinarmos para o exterior face ao perigo, quando em andamento. Tratar-se-ia provavelmente de um título certeiro para o filme, visto que nele se olha para o subconsciente e fantasmas que habitam no interior. Nesta sequência de imagens oníricas que compõem esta obra surrealista, numa delas um olho de uma mulher é cortado por uma navalha, ao mesmo tempo em que nos é apresentada a imagem de uma lua a passar pela lua.

O que muda a nossa opinião entre uma das obras cinematográficas referidas e esta última surrealista de Buñuel e Dalí? Qual é a diferença entre a simulação de violência de forma pura, dura e crua, e a violência sob pretexto surrealista e metafórico? Isto é, o que nos faz qualificar uma como arte e negar a existência das outras? A sua origem onírica? Saber que não é violência enquanto tal mas sim enquanto forma de representar uma outra ideia? Se essa ideia não for conseguida em nenhuma das formas, perderão as duas o seu sentido nobre de busca de significado e por conseguinte a classificação enquanto arte?

A discussão pode levar-nos até outras formas de arte ou de criação de conteúdo. Tomemos como exemplo Robert Mapplethorpe, que tanta tinta fez correr o ano passado devido à sua exposição em Serralves. Serão as suas fotos de nus, de conteúdo sexual provocatório, arte? Será a escrita realista, literal e visceral de Bukowski, onde a vida do autor, repleta de álcool, sexo, prostitutas e tabaco é o fomento criativo, arte? E no humor, qual a barreira? Porque é que a desconstrução de um facto ou de uma ideia pré-concebida por parte de alguém como Rui Sinel de Cordes é alvo de censura? Numa sociedade que vive com liberdade de expressão (nas suas várias formas) o conceito de “mau gosto”, algo tão pessoal, não pode nem deve nunca ser medidor de aceitação a todo o resto. Termos criado a rótulo/classificação de humor negro para quando são abordados assuntos mais “sensíveis” é já de si a verdadeira forma de estigmatização e de preconceito que devia ser mais evitada que o próprio conteúdo que esta visa classificar e são esses mesmos rótulos que separam por vezes a arte da ofensa, quando se trata da mesma coisa – e não há mal nenhum nisso. Mas se assim é, voltemos ao início: o intuito da criação artística e o seu fim é o mais importante ou o objecto alvo da transformação com esse fim? Na obra de Banksy, terá mais valor a obra inicial ou a obra destruída? E será efectivamente a obra destruída, arte?

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