“Légua”. Filipa Reis e João Miller Guerra pediram o que nunca tinham pedido a ninguém: “encenar a própria morte”
“Légua” (ler crítica) estreia-se esta quinta-feira (dia 29) nas salas portuguesas depois ter estado em Cannes, na Quinzena de Cineastas. Falámos com a dupla de realizadores na riviera francesa.
Um realizador pode pedir muito ao actor. Quase tudo. Tom Cruise talvez não seja o melhor exemplo, mas serve o momento. Atira-se de mota de um penhasco na Noruega. Agarra-se a um avião para salvar a indústria do cinema norte-americano. Noutra escala, bem mais portuguesa, Leonor Silveira saiu de “Vale Abrão” (filme do saudoso Manoel de Oliveira), onde interpretou Emília Paiva, seu papel mais icónico, a coxear. Durou semanas. Filipa Reis e João Miller Guerra, dupla que já tinha realizado a longa-metragem “Djon Africa”, pediu a Fátima Soares, uma actriz não profissional de 75 anos, para “encenar a própria morte”. Realidade contra ficção, não se sabe onde começa e acaba cada uma. Foi essa a proposta inicial de “Légua”, que se estreia esta quinta-feira nas salas de cinema portuguesas. Conversámos com a dupla de realizadores no Festival de Cannes, num momento de celebração do cinema português, pontuado pela visita do ministro da cultura, Pedro Adão e Silva ao festival. Acabou por não ver “Légua”.
A ideia para o filme tinha anos. João Miller Guerra sabia que queria encontrar uma história para a enorme casa de família na região, onde o realizador passava férias com o irmão e o pai. A doença da governanta da família, que acabou a viver na casa da ajudante, a Casa da Botica, foi o pretexto para criar uma ficção sobre o ciclo da vida. Três gerações de mulheres de uma aldeia no concelho de Marco de Canavezes que enfrentam o passado foi o enredo escolhido para um guião construído por várias mãos. Encontraram Fátima Soares, que é Emília, num workshop entre grupos de teatro amador e universidades sénior. De um apartamento com dois gatos lá dentro, foi desafiada a explorar o corpo, a sua degradação e o seu ponto final. De tantas mulheres, foi ela a escolhida. “Foi logo selecionada. Quando a vi à espera para o casting pensei: uau. A Fátima Soares tem uma particularidade que é a de, por um lado, ser de Marco de Canavezes, e depois de ter vivido muitos anos em Inglaterra. Transporta uma territorialidade mas manteve uma abertura para responder a este desafio. Para não se chocar com os nossos desafios”, revela Filipa Reis.
“O filme é sobre o ciclo da vida. Falar sobre a morte é falar sobre a vida. E era essa a ideia que queriamos passar no guião. Do ciclo agrícola, das estações do ano, do crescer das plantas. Faz-te pensar sobre o grãozinho de areia que és na praia gigante que é o universo. O guião transborda Portugal.”
E que desafio. O da doença, o de não aceitar que o fim está próximo, de se resignar a entregar a missão da sua vida — tomar conta de uma casa onde os donos nunca chegam — à sua ajudante Ana (Carla Maciel). “Nunca pedimos nada tão difícil a ninguém, o de encenar a própria morte. Foi incrível”, diz a realizadora e também produtora da Pedra no Sapato. Essa dureza que se vê num corpo que deixa de conseguir comer, vestir, lavar-se, é contraposta com a libertação de Ana, que vê o seu marido a emigrar para França e a sua filha a querer emancipar-se, fugir da terra que a viu nascer. A escolha de Carla Maciel foi unânime. “Decidimos que não podíamos ter outra atriz não profissional como protagonista. Escolhemos a Carla. Houve muita preparação física, principalmente da Fátima. Deve ter sido complicado para ela. Mas a Carla acolheu-a como colega”, diz Filipa Reis.
João Miller Guerra percebeu ao lado de Filipa Reis que, pela primeira vez, este tinha de ser um trabalho em conjunto, do início ao fim. Se a realizadora costuma estar mais ligada ao trabalho com os actores, o realizador dedica-se à fotografia. Aqui da união fez-se a luz. Desde o guião, onde diferentes guionistas se foram juntando à festa, como José Filipe ou Sara Morais — mais uma guionista brasileira e outra francesa — às residências, de norte ao centro, com os actores. “Um processo muito feliz”, revela o realizador. De um ponto de vista próximo, quis-se uma história universal. Durante a produção e rodagem de “Légua”, os dois tiveram uma filha, fizeram o seu primeiro filme, largaram e voltaram à escrita desta obra. O tempo, sempre o tempo, foi essencial para retratar uma realidade que qualquer um pode experienciar. Filipa Reis queria falar dessas marcas do tempo em três gerações de mulheres, Miller Guerra queria um filme sobre um lugar que lhe era querido. “Toda a gente tem uma avó, um tio ou um pai. O filme é sobre o ciclo da vida. Falar sobre a morte é falar sobre a vida. E era essa a ideia que queriamos passar no guião. Do ciclo agrícola, das estações do ano, do crescer das plantas. Faz-te pensar sobre o grãozinho de areia que és na praia gigante que é o universo. O guião transborda Portugal”. “Légua” deu muito trabalho. “E muito prazer. Foi uma construção de muitos anos. Há uma relação maior com este filme para mim”, admite o realizador. Agora é esperar que os espectadores sintam o mesmo “amor de água fresca” (um spoiler sem spoiler).
Em mais uma edição que teve momentos importantes para o cinema português em Cannes, desde a reposição, trinta anos depois, de “Vale Abrão”, à presença de “Légua” na Quinzena dos Cineastas, ao único prémio português no festival, atribuído a João Salaviza e Renée Nader Messora e ao seu “Flor de Buriti” na secção Un Certain Regard (Prix d’Ensemble), saiu também uma certeza: há uma vontade grande dos autores portugueses em apostar cada vez mais na internacionalização. Este “Légua”, que “não podia ter escolhido melhor lugar para estrear”, deu-se a conhecer em Cannes. Filipa Reis e João Miller Guerra abriram o jogo, confessando que, nos contactos que tiveram na riviera francesa, há possibilidades do seu filme ter um bom percurso este ano. Mas olhando para dentro, ou seja, para Portugal, fica, como sempre, a dúvida. Será que o filme terá espectadores? E receberá a atenção mediática necessária? E logo numa altura em que as atenções estão mais viradas para o que se passa em território nacional, nem que seja pelo sucesso de “Rabo de Peixe “(Netflix), ou aos frutos do cash rebate, que, apesar dos problemas crónicos, trouxe mais produções internacionais para o país.
Para a parelha de realizadores, tudo isto, num futuro próximo, terá de estar ligado a uma palavra: estratégia nacional que vá das salas de cinema às salas das escolas. “Temos de estar atentos ao Plano Estratégico do ICA [consultora inglesa elaborou um documento onde pede uma estratégica holística para o audiovisual português] e ao contrato de concessão da RTP. O tipo de cinema que estamos a fazer não se faz só com dinheiro português”, afirma Filipa Reis. O que é que isso quer dizer? “Essa é só uma primeira etapa. Depois, é preciso fazer coproduções internacionais. Por vezes, para algum tipo de financiamento, é exigido ter uma ou duas televisões a bordo. O resultado do trabalho internacional dos produtores e realizadores portugueses tem sido feito com consistência. Mas é preciso uma estratégia para dez anos para que os portugueses vejam o nosso cinema”, finaliza a realizadora.