Lendo a anunciação aos pastores em domingo de Advento
Detentora de um encanto incomparável, a narrativa de Lucas referente ao Natal é uma leitura que já fiz tantas vezes, mas que, apesar de sabida «de cor», tem sempre o condão, na releitura, de me pôr a pensar em aspectos fascinantes que suscita.
A aparição dos anjos aos pastores chama sempre a atenção pela estranheza do vocabulário usado: a declaração de que «nasceu hoje para vós um salvador, que é Cristo senhor» (Lucas 2:11) faz-nos pensar nesta curiosa ocorrência única em todo o Novo Testamento da expressão «Cristo senhor» (χριστὸς κύριος).
Faz-nos pensar também na espantosa raridade, nos Evangelhos, da palavra «salvador» (σωτήρ), totalmente ausente de Mateus e de Marcos e que, em Lucas, ocorre só aqui e em 1:47 (em João ocorre somente em 4:42).
Mas o maior enigma na aparição dos anjos aos pastores é a palavra por vezes traduzida (como fez Jerónimo na Vulgata, que tive toda a honra em seguir) por «boa vontade» (εὐδοκία):
«Glória nas alturas a Deus!
E, sobre a terra, paz
Entre pessoas de boa vontade».
Na tradução de Jerónimo:
«Gloria in altissimis Deo
et in terra pax
in hominibus bonae voluntatis».
Esta expressão em genitivo «bonae voluntatis» espelha o genitivo εύδοκίας que lemos nos manuscritos mais antigos do Novo Testamento. Mas mesmo nos mais antigos de todos, o Codex Sinaiticus e o Codex Vaticanus do século IV, um escriba posterior ao escriba original corrigiu o genitivo para nominativo: εὐδοκία.
Em inúmeros manuscritos gregos mais tardios, o que lemos é, de facto, o nominativo. Se foi o nominativo que Lucas escreveu, a tradução certa seria:
«Glória nas alturas a Deus!
E, sobre a terra, paz!
Entre pessoas, boa vontade!»
Portanto, não são «pessoas de boa vontade» a que os anjos se estão a referir (muitos menos «homens por Ele amados» nas palavras extraordinariamente inexactas ditas na missa católica).
A mensagem dos anjos não é para um grupo especial de «pessoas de boa vontade». A mensagem consiste em anunciar ao mundo duas coisas: paz na terra; e boa vontade entre os seres humanos.
Todos os seres humanos. Não só os «de boa vontade».