“Les Garçons Sauvages” é uma torrente de referências
Muito se tem falado ultimamente de um novo movimento no cinema francês, constituído por Yann Gonzalez, a dupla Poggi/Vinel e Bertrand Mandico, que, antes desta sua primeira longa, era já habitual de festivais de cinema com múltiplas obras de menor duração. A obra dos três é percorrida por uma sensibilidade surrealista, revisionista e híper-esteticizada, inspirada particularmente pelos filmes de série B da década passada. Neste sentido, Les Garçons Sauvages (2017) não é exceção e ainda sobe a parada.
“Ricos, insubmissos, descomplexados e apaixonados pela sua professora de literatura, acreditando ingenuamente que o sentimento era recíproco” – assim nos são apresentados os rapazes, que, deixando-se serem levados por estes seus amor e insubmissão, se aproveitam da professora, incidente que termina com a sua morte. A fim de serem apuradas responsabilidades, os cinco enfrentam julgamento. Desde logo, alguns elementos sobressaem nestas duas cenas, entre as melhores do filme, propondo excelentes utilizações da imagética de Mandico. Na primeira, as imagens analógicas a preto e branco, pontuadas, em momentos-chave, por pequenas sequências a cor, à moda de Koji Wakamatsu, criam um ambiente delirante onde, do ritual pagão posto em cena pelo bando de aspirantes a atores, sobressai a violência e descontrolo dos jovens. Já o mestre japonês fazia questão de tornar as suas imagens a cor das mais memoráveis da sua obra, exibindo um uso particularmente expressivo da cor. Mandico, enveredando pelo mesmo caminho, torna estes momentos autênticas explosões de brilhantes, fumo e luzes. A cena do julgamento é definida pelo caráter performativo do filme: nela, em frente de um fundo falso, cada uma das mulheres que dá corpo a estas personagens masculinas sobe a um púlpito onde, através de grosseiras interpretações – que todavia nos deixam perceber as diferenças de caráter entre cada um – tentam mostrar a sua inocência.
Os seus esforços revelam-se infrutíferos, pelo que são obrigados a embarcar numa viagem onde, segundo o Capitão, serão libertados da sua natureza violenta e desobediente. Les Garçons Sauvages entra, então, nos moldes de filme de aventura, sendo a lógica construtora da obra baseada no reaproveitamento de elementos oriundos do passado progressivamente mais evidente. Desde alguns mais evidentes, como os filmes do Tayouzoku e Rainer Werner Fassbinder, a outros não tão claros, Mandico parece, nesta porção – correspondente ao grosso – do filme, quase exclusivamente dedicado à reencarnação destes mitos cinematográficos – algo bem patente na interminável lista de referências que lhe serviram de inspiração que forneceu ao Mubi -, em cada um injetando a sua sensibilidade erótica queer, até à declaração, próximo do final do filme, de que “a mulher é o futuro do homem”, que ata as pontas soltas e fornece algum fecho à jornada.
Assim podemos ver que, apesar de tudo, a binariedade é conservada, base porventura interessante para leituras psicanalíticas das diversas personagens e desenvolvimentos. Porém, estes esforços parecem ser antitéticos com a natureza quase aleatória do filme, cuja capacidade de criação de mundo advém, em parte, da rejeição de uma abordagem mais discursiva, porventura sintoma do passado exclusivamente dedicado às curtas-metragens do seu realizador, o que aqui resulta numa insuficiência a nível de conteúdo que justifique as duas horas de duração. Em adição, Les Garçons Sauvages tem sido posicionado como uma obra feita à medida para um determinado público – como podemos ler na sinopse do Indielisboa, onde o filme teve a sua estreia em território nacional, “Um filme que põe o Q em Queer.” -, o que impedirá o imaginário surrealista de Bertrand Mandico de atingir alguém suscetível a por ele ser chocado. Resta uma curiosa, mas pouco impactante, obra de nicho.