“Les Miserables”, de Ladj Ly: drones, anti-heróis e Victor Hugo
Em “Les Miserables”, o primeiro filme do francês Ladj Ly, sente-se o auscultar da pulsação da sociedade francesa da actualidade. Em particular nos bairros sociais, como o de Montfermeil, onde vive o realizador estreante e onde a comunidade vive numa panela de pressão.
A escolha do título acaba por justificar o final apocalíptico numa rima forte, mas muito século XXI, com o romance de Victor Hugo. Esta é a versão longa da curta homónima, nomeada aos César em 2017, em que os três protagonistas regressam para estes dois dias na vida de uma brigada de agentes da polícia e os seus choques com a malta do bairro. Eles são o agressivo Chris, também co-autor do guião, e líder do grupo, sempre com a sua t-shirt do anti-herói Venom, a famosa personagem da Marvel, o afro Gwada (Djebril Zonga) e o caloiro e mais compreensivo Stéphane (que vimos em “Rester Vertical”, de Alain Giraudie). Ladj Ly inspirou-se na sua prática de filmar situações de polícias em acção nos seu bairro, que acabou por divulgar na Internet provocando um escândalo e a apreensão dos agentes.
O estilo não é novo e pede emprestado o estilo à televisão, ainda que seguro. Lembramo-nos de “Homicide”, claro, no desenvolvimento dos laços complexos estabelecidos nestas comunidades multirraciais mantidas por códigos de honra, raça e religião. Mas lembramo-nos também da dinâmica das personagens em “Crash”, ainda que mais no sentido narrativo da história do que propriamente pela opção do filme-mosaico.
É um filme que parte da histeria do final do Mundial para regressar à realidade bem mais obscura. Depressa ficamos a conhecer a realidade desta equipa através da chefe de brigada, numa prestação potente de Jeanne Balibar, que inevitavelmente nos faz recordar Polisse, o filme que Maiwenn trouxe a Cannes em 2011, igualmente debruçado no quotidiano de uma equipa especializada em delinquência juvenil, um aspecto também aqui presente.
Este dia é preenchido com um caso de lugar comum – o roubo aparente de um pequeno leão do circo cigano – que acaba por gerar uma enorme tensão entre os ciganos, africanos muçulmanos e entre a polícia. Sobretudo depois de um garoto de rua ter sido ferido por um dos agentes quando ainda estava algemado. No centro do climax percebe-se o que falta fazer e a melhor forma de o fazer. Só assim se percebe que não estamos assim tão longe de O Ódio de 1995, e dos tumultos de 2008 na mesma zona
Só que tudo foi captado pela câmara de um drone que um outro garoto, Buzz, usava para espiar as miúdas a despir-se. Claro que existe aqui uma certa ingenuidade, que acaba por assentar bem ao filme. Mesmo que demore algum tempo até se livrar dos clichés televisivos normalmente associados a este tipo de filmes. Sobretudo na sequência final em que tudo transborda e acaba por ainda conferir uma maior expressão à revolução evocada no título de Victor Hugo. O filme que até começa com a festa do Mundial, acaba por deixar no ar o alerta da revolução. É já um filme importante este ano em Cannes.
Artigo escrito por Paulo Portugal, em parceria com Insider.pt