Levarei o fogo comigo

Ou o modo como Leïla Slimani restitui a memória da sua família e constrói a sua própria identidade.
Num fim de tarde de primavera, sob a luz diáfana de Lisboa e o chilrear dos pintassilgos, Leïla Slimani apresentou “Levarei o fogo comigo”, o último volume da trilogia que começou com “O país dos outros” e prosseguiu com “Vejam como dançamos”. O cenário, o jardim do Museu Nacional de Arte Antiga. Sentada num pequeno palco, a escritora franco-marroquina parecia ela própria uma personagem dos seus romances — determinada e delicada, irónica e comovida. Dialogava com Anabela Mota Ribeiro em inglês e francês, mas entrecortava palavras em português, “obrigada”, e assumia que precisava de tempo para “sossegar” até aprender melhor a língua do país onde hoje vive com a sua família. Nas duas horas seguintes, entre conversas, participação do público e a longa fila formada no final para autógrafos e fotos, Leïla partilhou o seu sorriso e história íntima feita de mulheres, exílios, silêncio e restituição.

“Ele tinha dito ‘quero escrever’ e, sempre que essa frase lhe vinha à mente, ela ficava comovida. Tinha a sensação de que nunca ninguém formulara diante de si um sonho tão bonito, uma aspiração tão nobre“. Talvez seja nesta passagem de “Vejam como dançamos” que está contido o desejo de escrever de Slimani e uma primeira centelha desta saga, literatura que nasce do silêncio herdado, da necessidade de devolver voz aos ausentes.
“Portava-se tão bem, e que memória prodigiosa, era capaz de citar trechos inteiros do Estrangeiro de Camus ou da Confusão de Sentimentos de Zweig! Seria escritora, foi Mehdi quem o declarou durante um jantar de família e ninguém contestara.” Aqui, Slimani, como narradora da sua própria história, parece admitir que estes livros estavam apenas à espera da sua maturidade para serem escritos.
A trilogia acompanha três gerações de mulheres da família Belhaj: Mathilde, a avó alsaciana que se muda para Marrocos por amor; Aïcha, a filha, médica num país que resiste à emancipação feminina; e Mia, o espelho mais próximo da autora, mulher homossexual num espaço onde liberdade e pertença continuam a ser noções difíceis. Slimani sublinha: “Mia não é o meu retrato. É mais um reflexo dos dilemas que carrego“. Mas há nela gestos que pertencem à escritora. Como o da infância, quando cortava o cabelo curto, vestia-se como rapaz e dizia que queria ser homem: “Quando eu era criança, não queria ser mulher. Detestava as mulheres. Olhava para o que faziam, para o que lhes era imposto — e só via limites. Pensava que para ser livre era preciso ser-se homem. E eu queria ser livre“.
A liberdade, contudo, não é um destino, mas uma travessia. Slimani vê na sua escrita um gesto de reparação — um modo de devolver dignidade aos que foram calados. Como o pai, Othman Slimani, figura ausente mas central neste último volume. “Não tive tempo de falar com o meu pai. Este livro é a conversa que nunca tivemos. Quis restituir-lhe a dignidade. Dar-lhe uma nova vida, pelo menos na ficção“. Othman foi acusado injustamente de corrupção e morreu antes de ser ilibado. Durante anos, a sua presença em casa foi a de uma ausência que ocupava todos os espaços: “Ele perdeu o trabalho quando eu tinha 13 anos. Durante uma década, ficou em casa, à espera. Esperava um telefonema, esperava justiça. Estava rodeado de livros. Para se chegar a ele, era preciso passar por uma muralha de livros e falar de livros com ele“.

É essa herança — de silêncio, de livros, de melancolia — que Slimani transforma em matéria literária. E fá-lo com uma consciência feroz do que significa escrever quando se vem de múltiplas margens. A língua é outro dos seus exílios. Cresceu entre francês, árabe, alemão, espanhol. Mas o árabe clássico, aprendido na escola, nunca lhe pertenceu verdadeiramente: “Era uma língua sagrada, imposta com medo e punições. Nunca foi a língua do afecto. Isso criou uma distância“. Hoje, admite sentir vergonha por não dominar o árabe, mas recusa fazer da falha um estigma: “Essa é a minha história. E não vou passar o resto da minha vida a pedir desculpa por ela“.
“Levarei o fogo comigo” é o livro onde essa falha se transforma em criação. Um romance onde a literatura serve de casa, de espelho e de túmulo. Mia, ao regressar à quinta dos avós em Meknès, sente-se estrangeira. “Adoro a palavra regressar, em português”, confessou Slimani. “Este livro não é só sobre sair. É também sobre voltar. E o que é difícil, e melancólico, nesse voltar. Porque quando se volta, já não se é o mesmo. Tudo muda no que deixamos quando estamos fora“.
Essa condição de estrangeira permanente — demasiado marroquina para ser só francesa, demasiado francesa para ser apenas marroquina — está no centro da sua escrita. “Vim de uma família diversa, original, marginal. Em Marrocos, as pessoas olhavam para nós como se não pertencêssemos. Éramos demasiado livres, demasiado ocidentais“. E ao chegar a França, descobriu que também ali não havia lugar para si. “Li Zola, Hugo, Proust. Conhecia a França pela ficção. Mas nas novelas, nunca vi alguém como eu“.
A literatura surge, então, como o lugar possível. “A minha casa são os corpos das pessoas que amo. São os meus filhos, o meu marido, os meus amigos. E os livros. Vivo nos livros“. Mas recusa as fórmulas identitárias: “A política fala de raízes com uma violência que me é alheia. Identidade é uma coisa pessoal. Não é nacionalidade. Não é ocupação. É ridículo dizer ‘tenho orgulho em ser isto ou aquilo’. Tenho orgulho em ser uma boa pessoa“.
Apesar de tudo, há neste romance um apaziguamento. Um aceitar da falha como território. Um olhar sobre o passado que não busca julgamento, mas entendimento. “Não sou como o meu pai. Não sou Proust nem Joyce. Mas sou eu. Tento expressar algo singular. Talvez não seja o melhor, mas é meu“. “Levarei o fogo comigo” é, talvez, o seu livro mais íntimo. “Há muito de mim neste livro. É a minha carne e o meu sangue. Senti-me perdida e solitária durante a escrita. Mas isso também me permitiu partilhar a minha vulnerabilidade. E isso, agora sei, não é fraqueza“.
Há escritores que não apenas contam histórias — eles resgatam, iluminam, devolvem. Levam o fogo consigo, para que outros não tenham de arder no escuro. Leïla Slimani forja o seu nome como um deles. E para quem quer aprofundar o contacto com a autora, a mesa-redonda no Festival de Sintra, no dia 21 de junho, contará com a sua presença onde serão discutidos temas relacionados com a sua obra e trajetória literária.