Liberdade de pensamento e de expressão
Uma das grandes liberdades que este século (e o final do anterior) nos trouxe é a de fazermos e sermos aquilo que somos e de que gostamos. Esta forma de liberdade reúne duas coisas fundamentais: pensar e poder expressar-se livremente. No entanto, apenas uma minoria de privilegiados vive nas circunstâncias de realizar o que deseja, seja a nível profissional ou pessoal.
Par de gémeas siamesas
Na obra Da Liberdade de Pensamento e de Expressão (1859), o filósofo e economista John Stuart Mill defende, sobretudo, o direito do indivíduo a pensar e a agir livremente. E não é um incentivo à irresponsabilidade. Deve-se pensar e agir segundo os desejos de cada indivíduo, e assumir a responsabilidade pelos seus actos. Aquilo que pode parecer um paradoxo, acaba por ser o modelo funcional das comunidades: liberdade e responsabilidade – par de gémeas siamesas. Saber o que pensar e o que fazer é a forma máxima de liberdade. É curioso associarmos primeiramente a liberdade ao hedonismo poético desgovernado. Mas liberdade e responsabilidade são o contraste ou a contradição, a que se referia Hannah Arendt, entre a consciência de que somos livres e responsáveis, e a experiência no mundo exterior em que as orientações obedecem ao princípio de causalidade.
Primeiro pensamento, depois expressão
A célebre frase “conhece-te a ti mesmo” demonstra a convicção de Sócrates (469 a 399) no investimento da liberdade individual. Foi um dos primeiros filósofos a aclarar o conceito de liberdade, e para o qual “o homem livre é aquele que consegue dominar os seus sentimentos, os seus pensamentos, a si próprio”. Para Sócrates, a escravidão é marcada pelo facto de o/a homem/mulher deixar que as paixões o/a controlem. A palavra-chave para a concretização da liberdade é o autodomínio. Ou seja, se se for livre nos pensamentos, a expressão agirá em conformidade, sendo também ela livre. O conceito de liberdade de expressão traduz-se no princípio de que é essencial na construção de uma sociedade democrática e igualitária, na sua dimensão individual e colectiva; no sentido de que todos os indivíduos têm o direito a procurar, divulgar ou receber ideias e informações. Com origem nos ideais iluministas, o conceito de liberdade de expressão foi primeiramente documentado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Constituição Francesa de 1793.
A violência da liberdade ideológica
John Gray, filósofo britânico, proferiu numa palestra, em 2015: “Continuamos a sonhar com um sistema universal, seja ele comunista, anarquista, neoliberal ou positivista, e deparamo-nos com uma ilusão. Nos séculos XIX e XX, e nas primeiras décadas do século XXI, nenhum destes sonhos demonstrou qualquer sinal de se estar a tornar mais próximo da realidade, mas, mesmo assim, são constantemente renovados e, muitas vezes, são renovados de forma violenta.” Gray acrescenta que “a violência do sonho da unidade, da harmonia, da civilização única, teve diversas formas no século XX: tivemos formas violentas no leninismo, no bolchevismo, no estalinismo, no trotskismo e no maoísmo. Todos eram formas de violência organizada. Também tivemos o nazismo, o fascismo e mais recentemente, os projectos neoconservadores de mudanças de regime”. Segundo este testemunho, fica-nos uma convicção: há uma violência inerente aos conceitos de liberdade de pensamento e de expressão, porque estes existem, inequivocamente, por oposição.
Falamos de liberdades inerentes à própria condição humana. Direitos que são independentes das diferenças culturais, religiosas, políticas, sociais e de quaisquer outros aspectos, visto pertencerem a todos os indivíduos igualmente, devendo ser garantidos para assegurar a condição das pessoas como seres humanos. Em Portugal, como em muitos outros países que viveram décadas em ditadura política, o elemento castrador continua omnipresente. Há um fantasma chamado pudor, ou medo, que assombra as liberdades individuais, impossibilitando, de facto, um jardim colectivo. A verdade é que ainda há muitos cravos para plantar neste canteiro, sim.