Liberdade, igualdade, etc., e dinheiro para vinho

por Leonardo Cruz,    5 Dezembro, 2022
Liberdade, igualdade, etc., e dinheiro para vinho
Ilustração de Natacha Costa Pereira
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Ainda não tinham passado dez anos sobre a queda do muro de Berlim, quando uma pequena faísca do ideário de um mundo mais equitativo surgiu a sul do Tejo. Muito para lá da Quinta da Atalaia e das suas Festas do Avante, distante ainda de Grândola, vila morena, esta utópica sociedade teve a sua origem no barlavento algarvio. Lagos foi a cidade que viu nascer o movimento, depois de uma semana a observar seus fundadores, por lá perdidos num período estival que poderíamos classificar como alcoolicamente expansivo. Se a revolução bolchevique partiu de séculos de ostentação czarista que dividiu o povo russo em poucos muito ricos e muitos muito pobres, o movimento revolucionário de que aqui vos falo deve a sua génese ao esbanjamento de recursos financeiros dos seus criadores na primeira semana, no Algarve, que contrastava com o limiar de bancarrota em vésperas da partida para a segunda fase do plano de férias: o Festival Sudoeste de 1999.

Bastaram sete dias excessivos a competir com congéneres do norte da Europa em improvisados campeonatos de “atletismo” cujas medalhas eram shots pagos pelo perdedor (nos quais, diga-se de passagem, o nosso país angariou um fantástico primeiro lugar, mesmo que para isso houvesse lugar a estratégias menos conhecidas pelos jovens nórdicos como a do “segurar cabrão dinamarquês quando se der a partida para a prova de sprint”); uma semana para transformar uns supostamente faustosos jovens burgueses, que não queriam fazer fraca figura perante os competidores estrangeiros, num miserável grupo de filhos do proletariado que tentava esticar os escudos, assim se chamava a moeda, para que durassem o fim-de-semana de concertos que iria ocorrer na Zambujeira do Mar, incluindo o transporte.

A História encarregou-se de esquecer o nome do seu ideólogo, e não há uma única prova de que poderei ter feito parte da sua concepção. No entanto, a ideia parecia, mais do que óbvia, justa: comprar comida “por todos” e racioná-la. Seria a melhor forma de poupar dinheiro garantindo que todos asseguravam não só a sua alimentação, como também e mais importante, o que beber.

Afinal, era o primeiro festival em que não partíamos de casa, o que equivale a dizer que viajávamos órfãos do carregamento habitual de sandes de carne assada, quiches, bolos e bolachas, e toda a panóplia de comida que as mamãs destes meninos delas se encarregavam de fabricar em quantidades avultadas nas vésperas dos grandes eventos.

Começámos pela bebida, as contas não eram difíceis: oito pessoas, dois garrafões de vinho tinto. Deveria chegar para 3 dias. Por pessoa, como é óbvio. Para quem possa achar demasiado, não vou entrar em juízos de valor. Permito-me apenas lembrar que isto se passou em Portugal. E que a comida era escassa, como iríamos perceber em poucas horas. O tipo de vinho adquirido, por norma escolhido tendo em conta o binómio preço/quantidade, exigia a imprescindível companhia de cítricas e doces gasosas (que pomposa e erradamente alguém por vezes chamava de “Seven Up”, sendo de imediato corrigido), pelo que meia dúzia de garrafas foram também angariadas ao abrigo do orçamento.

Para as refeições, os cálculos eram um pouco mais complexos: ração diária definida em “duas latas de chispalhada com feijão ou salsichas, quatro fatias de pão de forma e uma lata de atum” por pessoa. Não me recordo se, na altura da sua definição, as previsões estavam tão-só enfermas de algum optimismo, ou se foram porventura elaboradas em momento de fastiosa ressaca. Talvez apenas reflexo da inexperiência dos seus autores. À luz de quase um quarto de século depois, parece-me tudo uma mistura de matemática embriagada, alguma incompetência, desconhecimento de alguns dos mais sórdidos traços de carácter resultantes da condição humana, e uma enorme ansiedade de que não faltasse dinheiro extra para compra de mais bebidas, caso o stock transportado findasse.

Quando o autocarro chegou a Zambujeira do Mar, já a vila estava transformada numa base de festivaleiros mal lavados, cabelos andrajosos e t-shirts desbotadas com imagens de bandas de música, onde ainda prevalecia o grunge. Fomos devidamente anunciados pelo facto de uma das nossas malas ter caído da porta lateral do autocarro, estendendo uma passadeira de enlatados no alcatrão, o que provocou não só o riso dos transeuntes, mas também alguma cobiça. Esta só aumentou, ou não fosse “inveja” a última palavra dos Lusíadas (e olhem que Vaz de Camões não o deve ter feito por acaso), quando estes oito marmanjos de mochila às costas, uma vez chegados ao recinto do Festival, desfilaram por entre centenas de tendas com um garrafão de vinho em cada mão. No meio de aplausos e assobios, alguém parecia procurar uma tal de Elsa.

Já instalados nas várias tendas, montámos uma outra que seria utilizada em exclusivo como quartel-general dos víveres, bem guardada de eventuais predadores por via de um sistema criado em 1891 pelo norte-americano Whitcomb L. Judson que consistia numa série de ganchos que se prendiam a pequenas argolas, mais tarde substituídos por dentes metálicos num desenvolvimento do engenheiro sueco Gideon Sundback, já no séc. XX, que deu origem ao que hoje denominamos de “fecho éclair”.

Montada a base, tornaram-se evidentes dois problemas: fome e sede. As finas fatias de pão com atum não eram de forma alguma compensadas pelas “refeições quentes”, nas quais cada um colocava o conteúdo de uma das suas latas numa panela onde a mistura era aquecida e posteriormente servida nas mesmas latas de onde havia saído. Um rapaz da nossa terra trocava uma colherada deste manjar dos diabos por chamadas de telemóvel, penso que era o único de toda a tribo do Oeste que tinha um desses aparelhos. (Se calhar isso aconteceu noutro ano). O vinho acabou ao segundo dia, altura em que tivemos que fazer uma recolha monetária para ir à vila buscar mais, sob uma banda sonora de lamúrias cujo principal refrão era “eu disse logo que o vinho era pouco”.

Foi nesse segundo dia que aconteceu. Algo de que não me orgulho.

Cheguei a um ponto em que a fome era de tal ordem que parecia que o meu corpo já não me pertencia; tinha o ventre inchado, assim como o rosto, e sentia já nem reconhecer os meus camaradas. Já não comia nada há mais de duas horas: se isto é um homem, pensei. Além da escassez, havia um outro fator que contribuía para a avidez generalizada: a presença do nosso mister e seus cigarros especiais, e a respetiva particularidade de aumentarem ainda mais o apetite.

Consta que foi também ao segundo dia que Deus criou o céu, e foi daí que brotou uma chuvada bíblica. Um possível sinal. Perante o dilúvio, todos se acoitaram nas suas tendas: na minha, eu e mais dois. Começaram as conspirações. Em menos de trinta segundos, estávamos dentro da tenda das comidas a abrir latas de atum: o derradeiro acto de sedição. Não sei se os outros ouviram ou se tentaram fazer o mesmo, pelo que rapidamente fomos apanhados. Após alguma discórdia, apenas uma certeza: aquela sociedade que se regia pelo lema de “Liberdade, Igualdade, Fraternidade e, acima de tudo, Dinheiro para Vinho” iniciava ali o seu colapso.

O comité central deste impreparado grupo chegara a uma conclusão: medidas draconianas seriam tomadas. Era urgente mexer nas reservas do fundo de poupança para álcool e investir na alimentação. Cada um revirou as respetivas carteiras e, esfomeados, corremos em direção às barracas de comes e bebes. Após analisada a oferta, na qual por razões óbvias qualquer pedaço de pão duro barrado a terra pareceria apetitoso, chegou-se à conclusão que a melhor opção era uma barraquinha-churrasqueira de onde emanava um enleante aroma a carne grelhada, quase hipnotizante. E onde um frango custava quinhentos escudos (2,50 Euros na moeda moderna). Toda a colaboração societária havia acabado. Não havia cá “tu ficas com mais frangos que os que tens!”, como na Herdade da Torre Bela, agora era cada um por si.

O estabelecimento parecia bem organizado: primeiro o pagamento era feito na caixa, onde recebíamos uma senha escrita à mão com a inscrição “meio frango”, “frango e meio”, etc. De seguida aguardávamos um pouco até que, do outro lado do balcão, alguém nos entregaria a encomenda em troca da senha devida.

A inanição atingia o seu pico, assim envolta num furacão de fumo que insinuava suculentos frangos assados. Rios de água passavam-me pela garganta, um tormento que parecia nunca mais acabar. Uma espera interminável. E eis que, por entre a névoa, se deu um milagre.

— Pepê!!!!!!

Hoje olho para este episódio como a vez em que o meu ateísmo mais poderia ter sido posto em causa. O grelhador de frangos daquela barraca no Festival Sudoeste era um nosso conterrâneo, meu antigo colega de turma no nono ano.

Pepê parecia ainda mais satisfeito por nos ver. A cara de felicidade não esmoreceu quando olhou para os frangos assados que se preparava para entregar. De facto, o seu esgar de imensa alegria manteve-se mesmo quando, por momentos, desviou o olhar em direção ao céu, e depois a um cão que passou. Will Toledo, compositor da banda Car Seat Headrest, diria que Pepê fora “destruído por poderes hippies”. Naquele tempo talvez disséssemos que o nosso velho conhecido estaria afetado por algo que acompanha bem frango assado: broa. Vendo bem, tudo poderia ser apenas um mal-entendido por parte de Pepê.

Porém o milagre não foi a sua aparição. Porque é de actos de grande humanidade que se fazem os verdadeiros santos. Uma vez feita a entrega, Pepê não recolhia a senha. Mesmo que insistíssemos, fingia não ver. Provavelmente aqueles olhos semicerrados não conseguiam mesmo ver.

Nunca esquecerei aquela refeição. Oito selvagens de costas uns para os outros, devorando à mão pedaços de carne, ao longe o som do blues explosivo de Jon Spencer, ao perto uma orquestra de sons guturais que sugeriam satisfação, o cenário de uma animada confraternização neandertal. E nem o conforto de ter ficado no bolso com senhas para mais comida reduziu a intensidade com que aquelas aves foram dizimadas.

À conta de Pepê, o Santo, e do frango à discrição nas restantes refeições, ainda fiquei com enlatados desse festival, em casa, durante anos.

Desde esse dia, sempre que um de nós o vê, faz questão de lhe pagar uma rodada. É o mínimo. Mas aquele rapaz não merecia menos que um altar. Ou uma estátua à porta da Herdade da Casa Branca, onde ainda hoje se realiza o Festival. São Pepê — Santo Padroeiro dos Festivaleiros: um frango assado numa mão, na outra um wrap fininho a deitar fumo. Todavia para uma estátua é preciso bom dinheiro. Como angariá-lo? Já sei! E se constituíssemos uma cooperativa?

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