Lisboa em Gaza e a destruição como entretenimento
Um edifício com nome de Lisboa, uma família palestiniana e uma história que o mundo fingiu não ver.
Em novembro de 2023, soldados israelitas filmaram-se a sorrir no Lisbon Building — construído pelo sogro de Amani Makki —, contaram até três e explodiram-no. Dias antes, Amani perdera a restante família noutro canto de Gaza, quando um ataque destruiu a casa onde crescera. O prédio, batizado com o nome de uma cidade distante, nasceu de uma memória feliz: foi erguido depois de uma visita ao filho em Lisboa, onde a calma, as ruas e a promessa de recomeço o encantaram.
Amani Makki nasceu e cresceu em Gaza. “Vivi três guerras e uma intifada”, diz, como quem enumera as estações de um mesmo inverno. Cresceu a atravessar checkpoints e a dormir em carros durante dias, à espera que abrissem a estrada para visitar os avós. Aprendeu cedo que os cães também podiam ser armas — “até hoje, quando ouço um, sinto que vou desmaiar.”
A infância era feita de proibições, ruínas e pequenas resistências: a escola da Agência das Nações Unidas para Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Próximo (UNRWA na sigla em inglês) foi destruída sem aviso; a casa antiga, erguida antes do mandato britânico, com duas árvores plantadas pela avó – uma de figo, outra de manga — idem. “Nunca mais senti esse sabor”, diz. A mangueira sobreviveu até 2023.
O bairro onde cresceu era um retrato da diversidade que Israel tenta apagar: mesquitas, o hospital Al-Ahli e a igreja ortodoxa de São Porfírio, com mais de mil anos. Todos atingidos nos primeiros meses da ofensiva. “Não deixaram nada. Querem apagar tudo”, repete Amani, e é impossível não perceber que o verbo “apagar” é literal: destruir a pedra, a árvore, a fotografia, a história.
Em 2007, a Faixa foi selada. O mundo chamou-lhe “bloqueio”, mas para quem vive lá é prisão. Desde então, mais de dois milhões de pessoas vivem confinadas num território de 40 quilómetros de comprimento e seis a 12 de largo — sem porto, sem aeroporto, com as fronteiras controladas por Israel. A Organização das Nações Unidas (ONU) descreve-o há anos como “a maior prisão a céu aberto do mundo”.
Amani ainda concluiu o mestrado em Química — e um dia, de repente, chegou a autorização: 24 horas para sair de Gaza. Vais? Não vais? E se nunca mais te deixarem voltar? Foi. E acreditou que regressaria. Mas Gaza é um lugar onde regressar pode ser um privilégio impossível. “Quem entra, não sai. Quem sai, não volta.” Sair não foi liberdade — foi o início de um exílio.
A 7 de outubro de 2023, começou o que a história reconhecerá como um genocídio transmitido em direto.
Em poucas semanas, a ONU contabilizava mais de 35 mil mortos em Gaza — a maioria mulheres e crianças. Hospitais, universidades e centros culturais foram bombardeados. O Tribunal Internacional de Justiça, em janeiro de 2024, concluiu que há risco plausível de genocídio. Em Lisboa, Amani passava dias sem conseguir contactar a família. O telefone deixara de tocar — e o silêncio era a forma mais cruel de espera.
O pai era médico; a mãe, professora; os irmãos, profissionais de saúde. Durante duas semanas comeram apenas dois sacos de batata frita. Ligavam quando havia rede, só para que Amani conseguisse dormir.
No dia 4 de novembro, às cinco da manhã — aniversário do filho — chegou a notícia. O prédio da família ardia. Depois, a fotografia: quatro corpos cobertos por lençóis brancos.
Amani perdeu a mãe, o pai, a irmã e o irmão.
O Lisbon Building era o elo entre Gaza e Lisboa. Em novembro de 2023, soldados israelitas entraram no prédio, filmaram-se lá dentro, sorriram, contaram até três — e explodiram-no. Publicaram o vídeo nas redes sociais. É uma imagem difícil de esquecer: a banalidade do mal em direto, a destruição transformada em entretenimento.
Segundo investigações independentes da Forensic Architecture e da B’Tselem, dezenas de casos semelhantes ocorreram — militares a gravarem-se em edifícios civis antes de os demolirem. O Lisbon Building tornou-se símbolo disso mesmo: a normalização da violência filmada.
Hoje, Amani vive em Portugal e cria um filho nascido aqui. “Falo com ele como um adulto. Ele tem de perceber quem é — que é palestiniano — e tem de saber a verdade.” A frase que o pai lhe deixou é bússola: “O teu filho tem de saber a verdade antes de tudo ficar falso.”
“Falso” é a palavra certa. Falso é quando se chama “conflito” ao que é genocídio; “neutro” ao que é indiferença; “segurança” ao que é limpeza étnica. Amani recusa essa gramática: “É totalmente injusto.” E tem razão. Nenhuma metáfora salva o que já não existe — mas contar a história pode ainda impedir o esquecimento.
Entre o luto e a rotina, Amani insiste em nomear: ruas que já não existem, escolas apagadas, igrejas antigas e árvores de fruto. É essa persistência — dizer o nome de tudo o que foi destruído — que mantém o país vivo.
“O meu sonho é voltar só para cheirar o ar da Palestina”, diz. Entre o cheiro da manga e o cheiro do fogo, há um país inteiro suspenso. “Enquanto alguém contar, a verdade ainda respira — e a memória, como a mangueira do quintal da minha avó, insiste em florescer mesmo sobre o pó.”
Este foi provavelmente o episódio mais difícil de gravar de toda a série Yalla. Amani falou entre pausas, lágrimas e longos silêncios — mas nunca hesitou. Mesmo em luto, quis partilhar a sua história para que outras não fossem apagadas.
Há entrevistas que nos atravessam, não apenas pela dor, mas pela generosidade de quem ainda acredita que falar pode salvar o que resta. E talvez seja isso o mais comovente: a coragem de continuar a dar, quando tudo lhe foi tirado.

