Lisboa, senhora e desconfinada

por Gonçalo Ribeiro Telles,    22 Março, 2021
Lisboa, senhora e desconfinada

Lisboa depois da pandemia. “É esta conjugação temporal que dá azo à minha visão pessoal do que foi, é e me inquieta sobre que cidade ressurgirá daqui. Que Lisboa temos e teremos?”

Nasci e vivo em Lisboa. Há nove anos e meio voltei. Antes disso, estive sempre entre cá e lá. Passei uma boa parte da minha infância em Rye, Nova Iorque, e os últimos dois anos da adolescência a viver e estudar em Madrid. Concluída a licenciatura em Lisboa, comecei por trabalhar aqui e aventurei-me pouco depois, ao ir dois anos para Bissau, através do programa Inov-contacto. Fiz uma pós-graduação em Bruxelas, tendo voltado a correr para Londres, primeiro, e Lisboa, depois, mal a concluí. Paralelamente e ao longo de todos esses anos, tive sempre o desejo, oportunidade e a sorte de viajar por outros lugares e cidades em continentes como o africano, americano, asiático e naturalmente, o europeu.

Sempre que cheguei a Lisboa, confirmei aquilo que outros, porventura, terão descoberto antes de mim. Lisboa é especial e distingue-se pelas melhores razões. Nem sempre foi assim.

Como tudo na vida, há uma cidade que foi mudando com o passar dos anos e nessa mudança cabem todas as visões. Que vão desde o olhar sobre o lugar há vinte ou trinta anos até àquele mais recente e de que nos lembramos melhor, antes desta pandemia. Desse, bem vivo na memória, cada um guarda a sua história também. 

De um outro olhar sobre Lisboa, crua e despida de gente ao longo deste último ano e em especial, durante os confinamentos nos quais pude observar e fotografá-la, guardo-a mais triste, eventualmente semelhante a outra Lisboa de há largas décadas em que as pessoas saíam pouco de casa. Como as nuances são uma constante, foi nessa cidade deserta que consegui vislumbrar mais de perto toda a sua beleza e alguma da transformação dos últimos anos. Tal e qual o vazio das ruas o permitiram. 

É toda esta conjugação temporal que dá azo à minha visão pessoal do que foi, é e me inquieta sobre que cidade ressurgirá daqui. Que Lisboa temos e teremos? 

O português que vive em Roma há dez anos e fustigado com o lixo e o caos de uma das cidades mais bonitas do mundo, disse-me que Roma é hoje o que Lisboa era há mais de vinte anos

Não é só a azáfama sempre antecedida ou precedida pela tranquilidade que a luz própria transmite. Não são só as ruas com nome, de nomeação estranha como a Azinha da Bruxa ou sem nome, daquela que eu gosto de chamar a parte velha da cidade. Não é o facto do Bairro Alto, Alfama e a Graça terem sabido restaurar-se o quanto baste e influir na nova linha trendy, sem que a essência ou essa característica tão essencial de Lisboa tenha desaparecido. 

Não são só as tasquinhas como o Cantinho do Bem-Estar que valem outro tipo de estrelas de ouro e, entretanto, ganharam dimensão global, ou o comércio local nas suas várias formas que não podem desaparecer. Cumpre preservá-lo. Hoje, mais do que ontem. 

Não são só os novos conceitos que souberam encaixar-se nos antigos e sem os quais uns e outros separadamente deixarão de fazer sentido amanhã. Cumpre entendê-lo, porque esse é o charme de Lisboa. 

Não é só pelo facto de o turismo de massas procurar também a essência dos lugares e Lisboa ser tudo isso. Não é só o esplendoroso rio Tejo que interpela a cidade e reaviva a nossa memória de alguma da imponência histórica deste lugar. Não são só as manhãs de Alcântara, Belém ou as noites de copos no Bairro Alto. Ou o bairro de Campo de Ourique, Marvila, Alvalade e tantos que fazem desta cidade o que ela é. Tudo isso são os poucos que fazem o muito, mas não é nada isso. 

É algo menos lírico, mas inseparável de todas elas: a segurança da cidade, sem a qual nada subsistiria desta forma e como as vislumbramos.

Por mais ou menos anos que se tenha vivido no estrangeiro ou que se viaje, é impossível fugir à relevância de vivermos numa das capitais mais seguras do mundo. Importa relembrá-lo, defendê-lo e trabalhá-lo de forma constante. Essa também é a base de tudo no atual contexto global.

Há uma outra realidade que advém dessa base e que nunca pode ignorar muito do que se faz pior e ainda falha em Lisboa. Não é coisa pouca como em qualquer lugar. Mas, quando a comparamos hoje a outras capitais europeias como Atenas, Madrid, Paris, Londres, Berlim e Roma e nos lembramos de como era até há quinze ou vinte anos em que havia um atraso enorme e inegável em relação a todo o tipo de acessos, limpeza, organização e até na oferta cultural comercial e social, percebemos que isso hoje deixou de ser uma realidade. 

Não, não é só o sol e a praia que trazem os estrangeiros para viver em Lisboa. Isso é bonito, mas é pouco. Experimentem ouvi-los e perceberão melhor porque é que temos hoje uma capital desconfinada ao mundo. 

Os cínicos responderiam a isto com a globalização e os fundos europeus, mas se assim é, o que dizer dos parisienses, londrinos e madrilenos que conhecem bem Lisboa e não só o confirmam, como elogiam alguns destes fatores que até funcionam melhor por cá…? Ou do português que vive em Roma há dez anos e fustigado com o lixo e o caos de uma das cidades mais bonitas do mundo, disse-me que Roma é hoje o que Lisboa era há mais de vinte anos. Que ano após ano, considerava a capital italiana mais perigosa, desorganizada, confusa e suja. 

Não, não é só o sol e a praia que trazem os estrangeiros para viver em Lisboa. Isso é bonito, mas é pouco. Experimentem ouvi-los e perceberão melhor porque é que temos hoje uma capital desconfinada ao mundo. 

Parece-me que se aos “maus da fita do costume” e com a ajuda de muitos, cumpre entender e preservar aquilo que de melhor temos, a alguns lisboetas também interessará compreendê-lo e ainda mais, ao salto qualitativo que Lisboa deu na última década. 

Outra das coisas boas na nossa capital é que as coisas são feitas e pensadas com bastante melhor gosto do que há vinte ou trinta anos. Aqui, aprendeu-se com algumas das grandes capitais europeias e com a gestão municipal desde 2007. Restaurar em vez de construir prédios, abrindo a rua aos lisboetas. 

Quando nos lembramos do estado calamitoso de grande parte dos mesmos, em especial na baixa pombalina e olha-se para o que são hoje, dá gosto. Como dá ver uma praça como o terreiro de paço vazia e sem enfeites ou distrações pitorescas. 

A cidade deixou de ser concebida pelo inestético ofensivo e verifica-se que se constrói de outra forma, encaixando ou iluminando o que de melhor ela tem. É essencial que não se perca esta linha. 

Aqui, aprendeu-se com algumas das grandes capitais europeias. Restaurar em vez de construir prédios, abrindo a rua aos lisboetas.

E se consagre o facto de que deixar obra nas grandes cidades, não é necessariamente deixar obra nova.     

Finalmente, se há algo a reter desta pandemia e num lugar que sempre se quis posicionar em linha com as políticas de desenvolvimento sustentável, é a necessidade de outro tipo de turismo, através de projetos como o Novo Cais de Lisboa. Abra-se o rio e a cidade aos lisboetas, desentupindo-a, desde que ao fazê-lo, não se criem outro tipo de condicionamentos maiores. 

No fundo, o tempo e desígnio assemelha-se àquilo que Fernando Pessoa refere na última estrofe do poema Prece, nessa bela obra que é a Mensagem e que num sopro feliz, deu nome a este novo jornal digital sobre a nossa cidade.  

Dá o sopro, a aragem – ou desgraça ou ânsia –,
Com que a chama esforço se remoça,
E outra vez que conquistemos a Distância –
Do mar ou outra, mas que seja nossa!

Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Mensagem, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.


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