“Living City”: pensamentos e acções sobre a cidade, para a cidade
Há uns meses, no Porto, encontrei um exemplar de Living City. É um livro, em cuja capa branca constam apenas dois parêntesis rectos, subtitulados pela instrução INSERIR CIDADE AQUI. Peguei num exemplar, e num rápido folhear percebi a heterogeneidade de vozes e registos que o compõem: são, no total, dez colaborações que se espraiam fluidamente ao longo das páginas, numa colaboração à qual acederam através de uma chamada aberta. Numa primeira fase, houve um processo de discussão dos projectos, depois, foram apresentados sob vários meios — quando físicos, em partes específicas da cidade do Porto. Tudo culmina neste objecto, também disponível online, que tanto documenta a visão de cada um dos artistas colaboradores como, onde aplicável, a sua materialização num acontecimento real. Houve uma edição, distribuída gratuitamente, de mil exemplares destes objectos inconspícuos, cuja leitura integral não requer mais do que um par de horas, e deixa várias impressões sobre a cidade, tanto no seu conceito abstracto como sobre o Porto de agora, de 2021, e de há alguns anos a esta parte.
Entretanto, combinei encontrar Orlando Gilberto-Castro, arquitecto de formação e coordenador deste projecto, no café Célia, que fica na esquina da Rua Miguel Bombarda com a Rua do Rosário, a uns escassos metros de distância do sítio onde descobri a obra publicada do projecto: insere-se num simpático conjunto de ruas a que se informalmente se chama bairro das Artes, que tem uma série de espaços agradáveis e apetecíveis que apraz visitar. A conversa pareceu-me um bom ponto de partida para uma reflexão que se sente necessária sobre as cidades — por todos os motivos que conhecemos, e mais alguns — e interessou-me saber qual foi o ponto de partida, a motivação inicial, para que ele próprio levasse a cabo a chamada aberta para este diálogo.
Nessa nossa conversa, o conceito da transitoriedade assoma com frequência. Nascido em 1989 e tendo crescido na cidade do Porto, Orlando assistiu a uma série de mudanças que todos reconhecemos, como o dramático aumento do turismo, ou a descaracterização da pele de uma cidade, perdendo-se o comércio tradicional em prol de mais McDonalds e Starbucks. O espaço urbano deixou, porventura, de ser um tecido de actores familiares e reconhecíveis, para agora estar numa permanente efervescência, incessante trânsito de pessoas que fruem, mas não habitam a cidade. Na espécie de manifesto inicial de Living City, o único documento no livro da sua autoria, estabelece a intenção de “tornar inteligível a realidade da cidade que vivemos, tornar inteligíveis as nossas inquietações enquanto indivíduos e enquanto comunidades sobre aquilo que nos está a acontecer – a nós, e ao mundo como o conhecemos”.
Tentei a ajuda do Orlando para uma possível definição de cidade. Pela omnipresença deste conceito, por nos acompanhar há tanto tempo — desde, realmente, que existe civilização — supus que fosse um exercício simples. Deambulámos por uma série de ideias, folheou-se um livro que havia trazido, mas o termo escapou-nos. Uma possível resposta, ou um auxílio para lhe chegarmos, existe em traços mais abstractos, mas que circunscrevem uma acepção mais ampla do que é a cidade, nesse manifesto inicial da sua autoria. Living City herda o seu nome de uma exposição dos Archigram, um grupo de arquitectos vanguardistas da década de 60 do século XX, que elevavam a arquitectura à distopia e ao exercício radical, cruzando-a com a ficção científica e o humor absurdo. A Living City de Orlando propõe a reapropriação de conceitos basilares desse trabalho original:
INDIVÍDUO – SOBREVIVÊNCIA – COMUNIDADE – MOVIMENTO – COMUNICAÇÃO – LUGAR – CIRCUNSTÂNCIA.
A obra contém várias reflexões de diferentes âmbitos. Como exemplos: //Identidades do Porto//, da autoria de Sabrina Lima, retrata realidades imigrantes que escolheram o Porto para sua casa, e ser português por decisão; Ecoa Muda e Perdida, de Jonny Pugh, Mariana Almeida e Vasco Rodrigues (Zentzua), reflecte sobre a quantidade de espaço ocupado pelos Alojamentos Locais — e que subitamente se esvaziaram durante o período pandémico. Jonny Pugh levou também a cabo um assertivo trabalho, ao recolher centenas de comentários de redes sociais que espelham a reivindicação popular — sobre o turismo, sobre a habitação, sobre o eventual novo El Corte Inglés na zona da Av. da Boavista —, dando-lhes uma plataforma mais real, e reflectindo sobre a impossibilidade de comunicação bidireccional entre o cidadão e as estruturas políticas que governam a cidade. Essa é também uma grande frustração de Orlando, que recorda o ultrabizarro e altamente burocrático processo de participação numa sessão de auscultação pública sobre o destino da cidade, onde esteve presente parte do corpo político municipal, que, apesar disso, nunca se manifestou receptivo à escuta da mensagem cívica.
A nossa conversa deu-se pouco depois da sessão Regressos a Casa, no Centro de Cinema Batalha. Estávamos a 16 de Março, e mobilizavam-se as pessoas para a manifestação nacional de dia 1 de Abril, a propósito do problema geral de habitação. Na presença da realizadora Catarina Alves Costa, a sua curta-metragem Casas para o Povo foi projectada, seguida de uma conversa com o público. É um fantástico documento do turbulento período pós-25 de Abril, com imagens da reivindicação popular que grita o seu direito à cidade, e luta, de várias formas, pela possibilidade de a habitar. Passaram-se quase cinquenta anos: tudo na cidade está diferente, mas a reivindicação continua. No entanto, há uma outra questão que nem sempre assoma à discussão, tomada porventura por evidente, um dado adquirido: o porquê, ou para quê, de estar na cidade.
Uma vez mais voltamos à ideia de definição. De forma lata, podemos dizer que a cidade é um sítio onde se aglomeram pessoas, e onde naturalmente se encontra cultura, e educação; que a ida para a cidade normalmente pressupõe o objectivo de procurar melhorias na condição de vida do indivíduo ou da sua família. Mas a cidade não é, obviamente, nem paraíso nem panaceia. Obriga a um estilo muito específico de vida, e a frequentes compromissos para manter o poder de permanência no seu seio. A propósito disso, recuperamos as palavras de Adriana Cardoso para a CCA:
“Existe uma grande quantidade de pessoas que migram para grandes centros urbanos por necessidade profissional, e não porque lá querem viver. De facto, não usámos a experiência da pandemia com o rasgo que permitiria que muitas pessoas não perdessem horas do seu dia em transportes, e inclusive que pudessem viver nas suas zonas onde preferiam viver, por não termos sido céleres na transição digital.”
De alguma forma, qualquer reflexão sobre a cidade parece incompleta se não se incluir esse porquê, que frequentemente refere ao trabalho que se faz nas cidades – a motivação para pertencer à urbanidade é indissociável dessa necessidade laboral, e complexifica a questão porque também toda a teoria do trabalho exige atenção. Nos anos 30, Keynes projectou que por esta altura trabalharíamos algo como quinze horas por semana, e há quem argumente que a previsão falhou porque, afinal, consumimos muito mais do que seria esperado. Entretanto temos os bullshit jobs — até se extendeu a definição para os batshit jobs; e entre trabalhar seis, cinco, ou quatro dias por semana, parece que tudo é possível, bastando que exista a vontade de fazer uma transição.
Contemporâneos dos Archigram e igualmente devotos ao conceito de cidade — embora de uma forma mais sustentada no real, e em permanente diálogo com o espectro do capitalismo —, a Internacional Situacionista tinha acção mais determinada, com vontade de influenciar o momento presente e curso da história. Leonardo Lippolis escreveu, na sua obra Viagem aos Confins da Cidade (original de 2009, e com edição portuguesa pela Antígona em 2016):
“[…] os artistas que faziam parte da IS estavam convencidos de que a única maneira de travar e de inverter o processo histórico em curso era propor uma ideia alternativa de felicidade, ou seja, um sentido diferente do espaço e do tempo, inspirado nas formas de socialidade e nas actividades criativas e anti-utilitárias que o domínio real da economia tinha, por seu lado, de eliminar por completo para poder reinar de forma incontestada.”
Voltamos a Living City: a de Orlando, e a de todos os artistas que colaboraram tanto na obra escrita como na que aconteceu em vários eventos pela cidade do Porto. Estão reflectidas várias das preocupações que assombram o nosso quotidiano: a luta ecológica, o fenómeno da massificação do turismo, o significado do trabalho e a qualidade de vida do indivíduo e da comunidade: tudo isto é tema, e tudo isto é, de certa maneira, expressão artística e cívica. Fica o registo de pensamentos e acções sobre a cidade, para a cidade; e isto é sobre o Porto, mas também sobre Portugal, e, acima de tudo, sobre o que é ser um cidadão do mundo.