Livro mostra a vida de milhares de pessoas que viviam em 22 bairros de construções de barracas em Setúbal antes da revolução
Cerca de 25% da população da cidade de Setúbal vivia em barracas no final dos anos 60 do século passado, revela um acervo de fotografias encontrado no Arquivo Municipal e publicado num livro que será apresentado no domingo.
“Outro Mundo no Mesmo Lugar” foi o nome escolhido para o trabalho da autoria de Vanessa Iglésias Amorim (antropóloga), Jaime Pinho e Alberto Lopes (professores de História) e Lia Antunes (arquiteta), a partir de 70 fotografias e de um relatório efetuados por volta de 1970 no âmbito de um “Inquérito às barracas” realizado pela Câmara Municipal de Setúbal, ainda durante o regime fascista do Estado Novo.
Segundo Jaime Pinho, as imagens ilustram as difíceis condições de vida de milhares de pessoas que viviam em 22 bairros de construções abarracadas na cidade.
“A zona do hospital era um mar de barracas. E eu, que dei aulas durante 40 anos na Escola Secundária da Camarinha [Escola D. João II], comecei a pensar que aqueles bairros onde moravam os meus alunos e as minhas alunas, aquelas ruas que eu calcorreava diariamente, eram um mar de barracas há 60, 70 ou 80 anos, no tempo do fascismo”, diz à Lusa.
“Perante esta história incrível dos nossos avôs, das nossas avós, que viviam em condições tão difíceis, despojados dos mais elementares direitos, a ter água em casa, ter uma casa de banho, a terem umas paredes, a terem um teto, decidimos que devíamos dar uma ajuda para que não apaguem a memória desse tempo”, acrescenta.
Coautor e principal impulsionador do livro, Jaime Pinho destaca que as 70 fotografias dos bairros e o relatório que as acompanha permitem constatar a evolução na habitação na cidade, particularmente através do Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL), um programa estatal de construção aprovado pelo Governo em 31 de julho de 1974, três meses depois da Revolução de Abril, para responder às necessidades habitacionais de populações desfavorecidas em Portugal.
Em três dos antigos bairros de barracas de Setúbal – Pinheirinhos, Casal das Figueiras e Forte Velho – ainda hoje é possível encontrar vestígios dos amontoados de barracas de antigamente, que, entretanto, deram lugar a novos fogos, com boas condições de habitabilidade.
João Carlos Conceição, de 73 anos, e a mulher, Maria Irene Conceição, de 71, que viveram toda a juventude em denominados bairros de barracas, ainda guardam memórias desses tempos difíceis, que marcaram a vida de grande parte da população de Setúbal.
“Só havia uma ou outra casa de alvenaria, as chamadas casas de pedra e cal. O resto era tudo barracas, sem água, sem saneamento básico, sem nada”, recorda João Carlos Conceição, que viveu toda a juventude, até ir para a tropa, numa barraca da agora Rua Nova, no bairro do Casal das Figueiras.
“Era uma vida muito miserável até à revolução. Só depois do 25 de Abril é que houve abastecimento de água e saneamento básico. E só depois do 25 de Abril é que as pessoas deixaram de ganhar ao dia ou à hora”, corrobora a mulher, Maria Irene, lembrando que, à época, só os trabalhadores de três grandes empresas de Setúbal, SAPEC, União Elétrica Portuguesa e Secil, auferiam salários razoáveis, que lhes permitiam fugir daquelas zonas.
Enquanto recorda esse passado que não deixou saudade, Maria Irene, já com os olhos lacrimejantes e a voz embargada, conta também que nunca teve um brinquedo e que “as crianças daquele tempo, a partir dos 12/13 anos, tinham de ficar em casa a tomar conta dos irmãos mais novos, porque não havia creches, não havia nada, e os pais tinham de trabalhar”.
“Eu e os meus irmãos tínhamos todos a quarta classe. O meu pai não tinha dinheiro para nós podermos estudar mais. A minha vida, a vida dos meus irmãos, só mudou para melhor graças ao 25 de Abril, sem dúvida nenhuma”, afirma.
Hoje com 72 anos, Eduardo Silva estava emigrado na Holanda quando se deu a revolução e regressou a Portugal no mês seguinte, tornando-se num dos grandes impulsionadores de novas habitações no Forte Velho.
“Na altura já tinha alguma consciência política porque conheci pessoas muito politizadas e aprendi alguma coisa. Quando regressei, coloquei o meu conhecimento em prática. E resultou”, relata, durante uma visita a alguns locais do bairro.
“Organizámo-nos em comissões de moradores, tivemos a ajuda de uma equipa técnica que nos apoiou e de muitas pessoas da construção civil, que davam umas horas, uns dias a trabalhar à borla, a abrir caboucos e a fazer outros trabalhos, e fomos para a frente”, acrescenta.
Eduardo Silva sublinha a importância do SAAL por ajudar financeiramente as pessoas mais desfavorecidas na construção de habitação própria, com o apoio de brigadas técnicas e de arquitetos (como Siza Vieira, Alexandre Alves Costa e Gonçalo Byrne) que, em colaboração com as comissões de moradores, viabilizaram a construção de milhares de fogos em todo o país.
Foi assim que muitas famílias puderam abandonar definitivamente as barracas de madeira e folha de zinco. “Em 1976 já tínhamos construídas muitas destas casas do Forte Velho, que hoje albergam 71 famílias”, indica Eduardo Silva.
A apresentação do livro “Outro Mundo no Mesmo Lugar”, editado pelo Centro de Estudos Bocageanos com o apoio do município, da Associação José Afonso e das Juntas de Freguesia da cidade, e que também teve a colaboração de Maria Irene e João Carlos Conceição, terá lugar às 15:00 de domingo, na Câmara de Setúbal.
Está prevista uma segunda apresentação, às 19:00 do dia 25 de abril, na Casa do Comum, em Lisboa, espaço em que também será inaugurada uma exposição de fotografia para mostrar a realidade dos bairros de barracas do século passado em Setúbal.