“Lobo e Cão”, de Cláudia Varejão: sair da ilha para ver a ilha
Este artigo pode conter spoilers.
A mais recente longa-metragem de Cláudia Varejão, “Lobo e Cão” foi vencedora do prémio principal na secção Giornate Degli Autori, no Festival de Veneza, através de um júri presidido pela realizadora Céline Sciamma (“Retrato da Rapariga em Chamas“). É uma produção Terratreme, coprodução da produtora francesa La Belle Affaire e mescla a realidade e a ficção para abordar temáticas como papéis e identidade de género, sexualidade, religião e tradição.
Ana, nascida e criada na ilha de São Miguel, nos Açores, procura, entre a incerteza e o desejo, um mar onde navegar. Anseia, a par com o seu amigo Luís, um jovem queer, transgredir além-mar e explorar o horizonte entre o certo e o errado. A sua vida muda com a chegada de Cloé, uma amiga vinda do Canadá, que lhe mostra um novo rumo à sua juventude.
“É preciso sair da ilha para ver a ilha. Não nos vemos se não saímos de nós”. A frase do prémio Nobel português José Saramago percorreu-me a memória durante toda a sessão de “Lobo e Cão”. Neste filme, Varejão deixa mais que um apelo à empatia e à aceitação. Uma das proezas mais fascinantes do enredo é a forma perspicaz como apela à compreensão sem o fazer de uma forma paternalista ou radicalmente “woke”. Fossem as personagens notas musicais e a compreensão seria a pauta em que elas circulam sem rumo, mas em grande ritmo.
Ao espectador é-lhes pedido que compreenda não apenas a comunidade queer, mas também os reféns da mentalidade cerrada e o contexto que os abrange como um só, no mesmo barco. É fundamental “sair da ilha para ver a ilha”, pensar além do que o filme transmite e representa, testar a aplicabilidade da película no nosso sentido de empatia.
Através de uma câmara íntima e cúmplice, Varejão procura iluminar a autenticidade dos jovens atores, servindo-se de um ritmo intenso para explorar o tecido de cada pele, o fogo de cada olhar, a demora de cada beijo, mas também a frieza de cada soslaio e a dureza de cada olhar de desdém. O quotidiano das personagens acontece numa narrativa que não foi feita, à semelhança dos seus protagonistas, para permanecer em “caixinhas”, a história que se molde ao carácter de cada um. Cada personagem procura “sair da ilha” à sua maneira. Nos mais novos, isso implica transgredir, uma fuga incitada pelo pulsar inquieto da tenra idade. Enquanto nos mais velhos existe a necessidade de adaptação aos novos tempos e vontades, de “olhar de fora” para compreender o todo.
O filme é uma ode às boas intenções, mote de vida da população açoriana. A família é o combustível do andamento narrativo. Já os valores tradicionais e as práticas católicas representam os momentos de introspeção e meditação. E, enquanto celebração e a farra traduzem a liberdade de ser, a vontade em escapar da ilha sugere uma promessa final.
“Lobo e Cão”, rodado na belíssima ilha de São Miguel, é uma obra pertinente, sedutora, com uma valente combustão estética, repleta de talento e performances robustas, com tanto de autêntico quanto de experimental. Terá a sua estreia nas salas de cinema nacionais dia 8 de dezembro.