“Luanda, Lisboa, Paraíso”, o espantoso regresso de Djaimilia Pereira de Almeida

por Miguel Fernandes Duarte,    12 Novembro, 2018
“Luanda, Lisboa, Paraíso”, o espantoso regresso de Djaimilia Pereira de Almeida
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Em 2015, Djaimilia Pereira de Almeida entrou no panorama literário português com uma das mais arrebatadoras estreias de que há memória recente. Esse Cabelo era reflexão de base autobiográfica ao mais alto nível, juntando romance e ensaio numa busca por um espaço e uma identidade que não renegasse nenhuma das componentes da sua vida. Alguma expectativa marcava, portanto, o regresso da escritora. Mas, se havia algum receio, Luanda, Lisboa, Paraíso é a clara confirmação da qualidade da autora. O novo livro de Djaimilia em nada fica atrás do primeiro.

Tal como Esse Cabelo, é também um livro acerca da diáspora. Mas, enquanto esse era história na primeira pessoaem Luanda, Lisboa, Paraíso a autora abandona a sua biografia para nos dar a história de Cartola de Sousa e seu filho, Aquiles.

Abandonando Angola, pai e filho rumam à Lisboa dos anos 80 para que Aquiles, a completar 14 anos, possa finalmente ter os tratamentos recomendados pelo médico. Afinal, nascera com um defeito no calcanhar (razão pela qual o pai escolhera para ele esse nome) e só em Lisboa lhe era possível ser submetido à operação adequada. Como muitos dos que vieram das ex-colónias portuguesas por questões de saúde, não sabiam que a viagem não iria ter regresso.

A sequência do título da obra é, portanto, a sucessão de locais e espaços na vida de pai e filho, desde a Luanda onde viviam até ao Paraíso, um bairro de lata fictício na Margem Sul, passando por Lisboa, onde habitam numa pensão enquanto Aquiles mantém os tratamentos.

O parto que marcara o calcanhar de Aquiles fora também o mesmo que deixara Glória, sua mãe, imobilizada na cama onde passa os anos seguintes. É esse estado de doença que a impede de viajar com o marido e o filho para Lisboa, deixando-se ficar em Luanda ao cuidado da filha, Justina. Antes de partirem para Lisboa, era Cartola quem cuidava da esposa, com uma devoção enternecedora, mas era “para ele um calvário tomar conta da mulher, prova que tinha aprendido a superar desejando tanto a morte dela como desejava as melhoras.” Vidas abortadas pelos defeitos de cada um. Mas “não eram vítimas uns dos outros, nem ninguém tinha torcido os seus sonhos de propósito.”

Djaimilia Pereira de Almeida

De certa maneira, Cartola viera para Lisboa para recomeçar, imaginando sempre que, em Portugal, seria reconhecido como português. Mas cedo se apercebe que aquele que era em Angola ficara para trás. Parteiro em Luanda, em Lisboa vira homem das obras e vai gradualmente perdendo a mão do seu destino. As condições em que vive com Aquiles são precárias, no mínimo, e o choque de realidades deixa Cartola letárgico. Não era o mesmo que deixara Luanda e, quando comunicava com Glória por telefone ou lhe enviava cartas, aquele que falava não era mais que uma personagem mantida na memória.

“Parecia pensar que um dia lhe bateriam à porta e lhe diriam que estava tudo tratado, que era enfim português, direito que julgava pertencer-lhe. Não sabia ele conjugar o gerundivo e a origem etimológica da palavra “Tejo”? Não achava, inspecionando-se ao espelho, que não se geravam a norte do Alentejo, “e muito menos em África”, maçãs-de-adão como a de Aníbal Cavaco Silva? Não era dócil e cordato contando que não estivesse bebido? Não engraxava os sapatos do filho aos domingos sentindo-se sempre mortificado? Não escolhera já o seu talhão no Cemitério dos Prazeres, para onde se esquivava a entoar cânticos fúnebres em kikongo enquanto admirava os jazigos de família? Não se arrepiava ao ouvir o hino de Portugal e sabia de cor a primeira estrofe dos Lusíadas? Não abafara o seu desejo ao ponto de ter esquecido de como era o corpo de Glória e decorado os afluentes do Mondego? Não estava curvado e musculado como uma atracção de circo a quem se pagaria para ver recitar a dinastia de Bragança enquanto equilibrava um banco na cabeça? Como não havia um secretário engravatado de lhe bater à porta um dia, saudando-o e estendendo-lhe um diploma comprovativo, enquanto um conjunto tocava concertina, bombo e tuba à graça do mais recente português?”

Mas Cartola não era olhado enquanto português, e é omnipresente o olhar reprovador que recebe de fora, tanto pela sua etnia como pela sua condição. Fora do seu local quotidiano, tanto ele como Aquiles são constantemente olhados de lado, tidos como pedintes, carcaças, lixo humano. Quando Iuri, um rapaz negro do Paraíso, vai para a escola, tudo aquilo que era felicidade naquela pequena localidade é, aos olhos de quem o vê na escola, sinal da mais profunda escória. “As fatiotas novas [que tinha recebido para ir para a escola] não tinham impressionado fosse quem fosse no recreio e parecia mal aos outros encarregados de educação que ninguém o viesse buscar à escola. Passado o entusiasmo inicial, sentia-se estúpido.”

É uma vida duríssima, a que marca pai e filho, sucessão de trabalho nas obras (Aquiles junta-se ao pai nessa função), viagens de autocarro e convívio com o taberneiro com quem travam uma amizade, num dos poucos raios de esperança a atravessar o livro. Nisto se vai a vida arrastando, praticamente não concebendo já nem o regresso a Angola nem o regresso da família angolana para junto deles. Por um lado, Cartola deseja que Glória recupere, mas, por outro, a sua vida está já tão diferente que não concebe, sequer, a hipótese de a ver juntar-se a si em Lisboa. Glória é a sua única ligação a um passado que ficara definitivamente para trás, e, mesmo que este novo presente seja mais duro que o que vivia em Angola, prefere-o a cuidar de Glória para o resto da sua vida.

“Acostumara-se à falta de independência da mulher a ponto de desejar que ela fosse para sempre a sua doente. Tinham passado tantos anos que o regresso dela à vida se assemelhava ao regresso de um parente desaparecido que em vez de trazer consigo recordações boas não consegue entender que já ninguém o reconhece. […] E queria Glória morta na cama, não por maldade, mas porque essa era a condição de ele continuar a ser uma pessoa.”

Mas tanto quisera escapar à sua antiga condição que, por vergonha, se coibira de ser íntimo de Aquiles. Não querendo assustá-lo com a sua origem, “tinha condenado o filho a não ter história por medo de que ele não se conseguisse erguer se a conhecesse.” E Aquiles, agora tornado cuidador do pai, dava por si, tragicamente,  “a ansiar pelo calor da carrinha de Mota, dos piropos obscenos, da chispalhada fria, dos arrotos, do desprezo, [para] tornar-se enfim um homem vindo de algum lado a caminho de alguma parte, “o Aquiles, aquele preto coxo”.” Era a única forma que tinha de ser alguém. Ao menos nisso pai e filho estavam juntos.

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