Luca Argel na Casa da Música: dois dedos de conversa sobre a beleza ignorada das coisas pequenas
Luca Argel e Carlos César sobem a um palco tão despido quanto a música que vai ocupar a Sala 2 da Casa da Música na próxima hora. É quarta-feira de cinzas e a noite traz a calma depois da chuva que pintou o Porto de cristal. No mesmo dia em 2017, a cidade assistia ao lançamento de Bandeira, a primeira aventura de Luca Argel a solo pela sonoridade do samba. Dois anos depois, é dia de conhecer a segunda.
Há dias, na véspera do lançamento de Conversa de Fila, Luca falava-nos da vulnerabilidade “totalmente intencional” que se sente nas suas canções quando toca no formato minimalista de voz acompanhada pela guitarra: “em contextos de sala de concerto – como vai ser aqui na Casa da Música –, uma sala fechada, toda desenhada para que as pessoas entrem, se sentem e olhem para o palco e se concentrem no que está acontecendo lá, aí eu acho que, nesse momento, com álbum novo para lançar e com vontade de mostrar as minhas coisas novas que eu tenho, eu prefiro estar sozinho”. Esta noite, o público entra, senta-se e olha para o palco, concentrando-se no que acontece quando a poesia de Luca Argel lhe sai, musicada pela guitarra e por uma percussão “muito miniatura” que só a elevam, “porque são as letras que contam histórias”.
Luca abre o concerto como abre o novo álbum: “Pisque Três Vezes” introduz o sentimento de pena no público por este ser um concerto com lugares sentados. A viagem por Conversa de Fila prossegue com “Não Digo” e “Só Eu Acho?”; Luca parece progressivamente mais à vontade em mostrar-se e o público mais interessado em ouvi-lo. Fósforos e uma frigideira acompanham a guitarra. Parece impossível, mas é esta a percussão do álbum: utensílios de cozinha.
Arranca “Doze Anos” e o ouvido desatento liga os primeiros versos ao segundo single de Conversa de Fila; a canção de Chico Buarque e Moreira da Silva serve de inspiração a “Anos Doze” de Luca, “uma espécie de paródia dessa música que fala de um saudosismo de uma infância bastante diferente, muito mais nerd”, recheada de Super-Nintendo, Pokémon e “elixir de Red Bull com Coca-Cola”. O público ri e acena em concordância geracional. A prolongar a nostalgia vem “Estar o Ó, Ep.2”, do Bandeira. Dedicada ao universo de Star Wars, esta canção – e o “Ep.1”, que aparece mais cedo no álbum – leva a um final em jeito de medley com a famosa banda sonora dedilhada na guitarra.
Aberto o caminho de volta ao álbum aniversariante, partimos numa viagem por “Rua da Consolação” e “Acanalhado”, que Luca revela ser “a minha preferida e a de muita gente”. A atenção do público não se resume ao bate-pé inconsciente ao som do samba; percebe-se que registam as letras e navegam pela história por elas contada.
Voltamos ao Conversa com “Pra Não Dizer Que Sou Mau”. Depois, apagam-se as luzes antes de Luca entoar “Vila Cosmos”: “Vou conhecer o universo inteiro / Que não tenho como ver / Senão com olhos de brasileiro”. Carlos César acende um fósforo-surpresa, tirado da caixa de percussão improvável, cuja chama acompanha o balançar inconsciente do público. Apesar de Luca negar um tom político na sua música, esta é uma canção a pensar no Brasil, como conta ao público, que assume agora uma expressão de empatia: “o Conversa de Fila foi atropelado pelo Brasil. Eu pensei nele como um álbum muito leve, engraçado até, e no meu país as coisas estão para o outro lado: duras, pesadas. Tentei, nos últimos meses, encontrar uma justificativa para o álbum, e dei conta de que a alegria combina mais com a luta do que a tristeza. Ela paralisa, põe a gente mole. A alegria deixa a gente rija para resistir”. A expressão preocupada vira sorriso e uma salva de palmas ao músico. A pausa da música revela-se uma conversa unilateral de Luca com o público, que explica a importância da palavra que dá o nome ao novo disco: “conversa faz muita falta, pelo ouvir, o colocar-se no lugar do outro. Descobri isso depois de o Conversa de Fila estar pronto. A fila é uma espécie de instituição sociológica, com nada em comum senão o desejo de chegar no mesmo lugar”.
Como que a voltar à ideia da alegria, Luca regressa à música e a Bandeira: “Ninguém faz festa porque a vida está fácil / No barraco ou no palácio, ela está se o povo tem por que lutar”. O set parece mesmo refletir a conversa anterior: escrita na fila de embarque para um voo em direção aos Açores, segue-se “Conversa de Fila”, que dá nome ao álbum e personifica a beleza ignorada das coisas pequenas. Tão parte de Conversa de Fila como esta mensagem é o humor, como mostra “Samba Invertido”. Segue-se o primeiro single do álbum, que Luca descreve como uma “esquizofrenia natalícia: ano passado passei o Natal em Portugal, com muito frio; em 2017, tinha passado o Natal no Brasil, com muito calor”. “Natal, Natal” satiriza a festa de dezembro com “pinheiros de plástico, calção de banho e neve de esferovite”. A aproveitar o tema natalício – e para gargalhada do público brasileiro – Luca faz uma versão de “Boas Festas”, de Simone.
Aproximamo-nos do final do concerto e Luca volta a interromper a música e a irromper por um monólogo, desta vez para anunciar uma promoção “super especial” nos seus discos, por ocasião do lançamento. A apresentação de Conversa de Fila ainda vai passar por Coimbra (15 de março) e Lisboa (24 de março), mas Luca, em tom de brincadeira, quer acabar com o stock no Porto. “Depende de vocês sacanear os lisboetas”, diz, para delícia malvada do público.
A encerrar a setlist, duas das canções mais mexidas de Luca: “Calote”, e a mais recente “Rato, Rato, Rato”. “Quem não pulou no Carnaval, pode pular agora”, avisa o músico.
Luca e Carlos César abandonam o palco antes do clássico encore. “Tem gente que andou a dizer mal da Daniela Mercury esta semana…”. Luca não acaba a frase, mas o primeiro verso de “Nobre Vagabundo” diz tudo. A versão do grande clássico da brasileira já tinha sido partilhado pelo músico, a acompanhar uma mensagem de “amor e liberdade”, no primeiro dia deste ano.
Na despedida, não faltam agradecimentos à Casa da Música, a Carlos César – “espero que não tenham feito falta na sua cozinha” os instrumentos improvisados, brinca Luca – aos colegas do Samba Sem Fronteiras (“o projeto que me atirou para o mundo do samba”) e, por fim, “um obrigado assim muito abstrato ao Porto”, a quem dedica a última canção da noite e do álbum que acabou de ser percorrido. “Gentrificasamba” é uma ode ao Porto remodelado, coberta de humor negro, o hotel que hospeda Luca Argel há seis anos. “Obviamente o primeiro lançamento tinha que ser no Porto”.
Texto de Inês Loureiro Pinto.