‘Manchester By The Sea’, um drama emocionalmente arrebatador
Manchester By The Sea chega às salas de cinema portuguesas como um dos títulos com actual maior reconhecimento nos Estados Unidos da América, e um dos filmes com maior projecção para os Óscares. A terceira longa-metragem de Kenneth Lonergan após You Can Count on Me (filme de 2000) e Margaret (2011), tal como as obras anteriores do escritor e realizador, incide também ela sobre a perda pessoal, o luto, a convivência com o mesmo e as ramificações que isso traz numa pessoa e em todas as que a rodeiam. Um dos melhores filmes do ano, Manchester By The Sea conta com uma actuação brilhante de Casey Affleck que tem ao seu lado um elenco exemplarmente orientado por Kenneth Lonergan.
A cena inicial traz-nos vários planos sobre a localidade de Manchester, num registo quase documental. Na sua costa, Lee Chandler (Casey Affleck), o seu sobrinho Patrick (Ben O’Brien é quem interpreta Patrick na versão mais juvenil) e o irmão de Lee, Joe Chandler (uma saudosa aparição em grande ecrã de Kyle Chandler que tantas boas interpretações nos deu em séries ao longo dos anos desde Friday Night Lights ao mais recente Bloodline) confraternizam no barco deste último, onde Lee, um tio então alegre, animado e cheio de vida, brinca com Patrick e o mete a pescar.
Kenneth Lonergan dá-nos este retrato familiar para de seguida romper prontamente com a visão com que ficámos de Lee. Percebemos que a cena em Manchester se situava no passado e Lee Chandler é um faz-tudo em Boston, vivendo num quarto num dos prédios onde, entre tantas outras coisas, arranja paredes, infiltrações, desentope sanitas ou limpa a neve num sem-número de tarefas e de situações onde lida com os inquilinos de forma desapaixonada. “Nunca dizes bom dia”, assinala o patrão. Lee Chandler tem um olhar vazio, quase sociopata e que explode perante o mínimo de confrontação. A personagem que nos foi apresentada como sendo alguém cheio de vida não existe mais e percebe-se que algo de aterrador se passou entretanto roubando-lhe a anterior alegria.
Uma chamada telefónica contendo uma trágica notícia leva-o de volta à sua terra natal. Lee chega ao hospital já com o seu irmão morto, vítima de uma doença cardíaca. Uma vez em Manchester, é através de flashbacks perfeitamente orquestrados num excelente trabalho de edição, que vamos conhecendo um pouco do peso do passado que Lee carrega e do que se passou para entretanto se ter tornado na pessoa que é agora.
Com a morte do seu irmão é Lee Chandler que fica como tutor de Patrick (é Lucas Hedges quem o interpreta já em fase de adolescente) visto que a mãe deste, uma ex-alcoólica, pouco contacto mantém desde que fugiu de casa e se separou do seu pai. A personagem de Patrick foge ao convencional, e sempre exagerado, “adolescente problemático” (apesar de o ser), marcando o seu impacto e presença na vida de Lee pelas coisas mais mundanas como os ensaios da banda, os treinos da equipa de hóquei ou as namoradas. Menos normal é a tentativa de reaproximação da mãe junto de Patrick, e é também esse acontecimento e a demonstração de fragilidade perante essa situação que ajuda numa espécie de despertar para Lee, dando-lhe um propósito e motivação para a vida há muito perdido e um sentimento de protecção para com o seu sobrinho. Esta é uma relação cujos sinais da sua importância nunca nos são dados de bandeja, e que começa até de forma problemática por serem duas pessoas “estranhas” uma à outra que têm de passar a viver em conjunto. Mais do que isso, a forma como Kenneth Lonergan constrói esta relação entre os dois torna-a num processo natural, sem nunca a exagerar nem a desconsiderar.
Apesar de ao longo do filme irmos ganhando noção dos acontecimentos que levaram Lee a ser aquilo que é, Lonergan consegue ainda assim arrancar um pedaço de nós quando finalmente nos revela o sucedido. Através de um guião excepcionalmente escrito, esta descoberta que tem como figuras centrais Lee e a sua então mulher Randi (Michelle Williams) causa em nós um ainda maior desconforto do que aquele que já vínhamos sentindo.
Numa das últimas cenas entre os dois, Randi, num verdadeiro turbilhão de emoções, diz a Lee que não tem “nada de especial” para lhe dizer, apesar de o querer fazer. Lee responde-lhe que “não faz mal”, sem saber o que responder mais. Na verdade, nunca há nada que ele pudesse dizer no meio daquele sentimento constante de asfixia e dor com que vive. Quando Casey Affleck recebeu o seu recente Globo de Ouro para Melhor Actor em Filme de Drama por este Manchester By The Sea, prontamente agradeceu a Michelle Williams, que teria tanto mérito quanto ele neste galardão. Analisando o possível excesso de modéstia de Casey, tal referência é mais do que merecida pois é de facto com Michelle Williams que nos são proporcionados alguns dos melhores momentos do filme, sobretudo naquele que é um dos melhores diálogos dos últimos muitos anos no cinema. Este encontro fortuito onde se dá a conversa entre ambos os personagens dá origem a momentos de pura dor, mágoa e arrependimento que se sente no ecrã e que se transporta para quem vê a cena em questão devido a uma excepcional realização e trabalho de dois actores em verdadeira comunhão: Michelle Williams, em boa altura reaparecida aos grandes filmes (e a fazer lembrar o seu papel em Blue Valentine) e o arrebatador Casey Affleck, numa lição de underacting (ao contrário do overacting, o underacting existe quando há uma manifesta e propositada falta de expressividade e de transmissão de emoções durante a performance) que lhe é já marca reconhecida (em Gone Baby Gone ou, melhor que este, The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford, um dos filmes mais injustamente esquecidos deste século) mas que desta vez o transporta para uma interpretação ao nível dos grandes nomes.
Porventura as únicas críticas a apontar ao filme de Lonergan sejam a ausência de mais minutos para a personagem de Michelle, para que pudesse também ela desenvolver a enorme complexidade dos seus sentimentos e, por outro lado, a existência de situações cómicas e “humor negro” em demasia. Tal facto, se por um lado nos retira por vezes o foco da carga dramática que o filme possui, por outro é, no entanto, essencial para nos dar uma sensação de realismo, criando uma junção quase agridoce de tragédia e comédia, extremos opostos mas tão normais no nosso dia a dia. As cenas em que o humor negro tem prevalência não o são para forçar o humor contrapondo-se ao mesmo; são-no, em vez disso, para nos lembrar da desordem que a vida é, mesmo nos momentos mais dramáticos. Lembramo-nos, em virtude disto, de uma cena em concreto onde Randi está deitada numa maca e dois paramédicos a estão a tentar colocar dentro da ambulância mas não o conseguem por as rodas estarem constantemente a cair (cena essa que não foi pensada, e no entanto foi inserida no filme). A tragédia de mão dada com as vicissitudes da vida numa lição de escrita e realização por parte de Lonergan.
Kenneth Lonergan dá-nos uma das melhores obras dramáticas dos últimos anos, debatendo-se ao longo da mesma com a luta interior por parte de uma pessoa perseguida pelo peso de um sentimento de culpa maior do que aquele que consegue carregar. Manchester By The Sea é um verdadeiro “murro no estômago” para qualquer pessoa que se preste a vê-lo. É, também, um drama emocionalmente arrebatador, capaz de nos causar uma sensação constante de aperto no coração.
Nem uma infinitude de palavras seria suficiente para descrever a imensidão de sentimentos presentes ao longo dos silêncios desta magnífica, e é por isso que alguns dos seus melhores momentos estão no que os silêncios conseguem revelar. Com isto em mente, por maior que seja também a imensidão de palavras que possamos usar para descrever Manchester By The Sea, as mesmas ficarão sempre aquém em transmitir o real valor da obra, da riqueza psicológica que acarreta e do impacto emocional que nos causa. Dolorosamente fabuloso.