Manel Cruz e a sua banda em modo mais-que-perfeito
Há um ano, mais coisa menos coisa, Manel Cruz estava a preparar os últimos concertos da Extensão de Serviço, com uma orelha gigante como pano de fundo, e a ultimar o lançamento do seu primeiro disco em nome próprio, onze anos depois de O Amor dá-me tesão/Não fui eu que estraguei sob a chancela Foge Foge Bandido. A enunciada Vida Nova revelou ser o início de um ano frenético para Manel Cruz, não só pelos concertos dados um pouco por todo o lado na apresentação do disco (entre os quais o impressionante espectáculo no Capitólio, que classificámos como um dos melhores que vimos em 2019), como pelas comemorações dos 20 anos d’ O monstro precisa de amigos dos Ornatos Violeta; e ainda nos foi dada a conhecer a banda-sonora que fez para “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas”, filme de Tiago Guedes.
No passado sábado, dia 29 de Fevereiro, o Teatro Tivoli BBVA, uma das salas mais bonitas da capital, perfeita em tamanho e soberba em acústica, recebeu com a devida pompa a Tour Nedó, que andará pelos teatros deste país. Nunca se sabe muito bem o que esperar dos concertos de Manel Cruz e da sua banda, quem lhe conhece os vícios sabe que anda sempre a inventar formas novas de interpretar as canções que já conhecemos; assim como apresenta, quase sempre, canções que tem andado a ruminar. Quem o conhece e tem acompanhado ao longo dos anos também sabe que dificilmente entrará em palco para fazer algo em que não acredita ou que não lhe faça sentido, num misto de quase perfeccionismo e de uma busca constante para “ir além”.
Foi assim que, começando com uma “Invenção da Tarde” reinventada, fomos assistindo ao desfile de quase todas as canções que compõem o Vida Nova e, entre temas que não estão gravados e outros que nunca tinham sido apresentados, algumas revisitações ao seu Bandido. No andamento de um concerto exímio, pautado por momentos de quase redenção com “As minhas saudades tuas” e pela honestidade de “Beija-Flor” (haverá canção mais perfeita do que esta?), por momentos de devaneio saudável com “Ainda pode descer”, de pregão pseudo-religioso de “Eleva!” (que devendo ser obrigatória em todos os concertos, é uma tareia e, pela complexidade, foi talvez a menos conseguida da noite), constatámos, por um lado, a solidez das canções do Vida Nova, quase um ano depois de as termos conhecido, e, por outro, os já-clássicos que o Bandido nos trouxe.
Ao longo de 2 horas, Manel Cruz subiu ao palco, percorreu a sala, saltou, dançou, fez piadas e deu conselhos como “Ginásio, todos os dias, não se pode falhar um!” Mas é nas letras e na forma de embalar que os concertos de Manel Cruz são únicos. Pela forma crua e doce com que nos desperta emoções, como se nos sussurrasse ao ouvido tudo aquilo que nós queríamos ouvir, pelas histórias que conta e pela forma mundana, sem rococós ou debruados a ouro, com que se apresenta. Ver o artista e a sua banda é levar um banho de humildade e perceber a honestidade, ser criança e adulto, aluado e contemplativo.
O único ponto “negativo” em todo o concerto, que só o será por capricho desta vossa escriba, terá sido alguma rigidez na interpretação, com algumas canções a pedirem um bocadinho mais de fôlego e de momentum. De destacar igualmente o fantástico desenho de luz, porventura o melhor que vimos com Manel Cruz, e a fantástica qualidade de som.
Nesta noite de um dia que só aparece no calendário a cada quatro anos, pudemos, mais uma vez, constatar que, agora que fez as pazes com o palco, Manel Cruz voltou para ficar, com as mãos cheias de canções novas que vai experimentando em palco e com um camião de clássicos, que pode ir rebuscando e reinterpretando. Também podemos ter a certeza que, à semelhança de Foge Foge Bandido, os concertos só ficarão melhores, um após o outro; e quando a Tour Nedó chegar ao fim, serão experiências ainda mais imperdíveis, imaculadas. Poderemos constatá-lo já no dia 6 de Março, em São João da Madeira, e no dia 2 de Abril, no Teatro Sá da Bandeira, no Porto. Nos entretantos, poderemos também apanhar Manel Cruz a solo, sem banda, num exercício de vulnerabilidade desarmante. É ver para crer.