Manifesto do escritor desempregado
No ano em que se inventou a profissão de escritor, o público ainda não tinha artes suficientes ao seu dispor para poder desvalorizar a mente por detrás das palavras. Nesses tempos, quando a fotografia era na verdade arte rupestre, o escritor era detentor de um poder e de uma sabedoria inabaláveis.
Feliz ou infelizmente (como sempre, tudo depende do ponto de vista), o tempo passou: os anos acumularam-se como folhas de papel no escritório do escritor. De repente, aquilo que por vezes fora somente pensado ou sonhado pelos senhores das palavras, ganhou vida, cor e dimensão. Mas, apesar de encarnar matéria, a ideia existia ainda no papel ou na imaginação, traduzida por vocábulos, imagens sonhadas em substantivos e adjetivos.
Hoje, talvez não sejam muitos os que se atrevem a ler estes parágrafos: compreendo o leitor se se aborrecer com tanto palavreado. Percebo que “scrollar” no instagram possa ser bastante mais apelativo neste momento: mas, mesmo por detrás das fotografias vistosas das vidas alheias, existem palavras que fervilham associadas ao sentimento, àquela tão popular imagem.
Não sei como ser quem sou e viver daquilo que faço – hoje em dia descartam-se ideias como quem mata as traças que zombam em direção à luz. Com tanta informação, notícia e telenovela, já ninguém se lembra de que, por detrás de um “Crime e Castigo” ou de um “Hamlet”, estava um escritor ansioso pela sua vez.
Como a humanidade progrediu e se criou a lei do mercado, os senhores que comandam o mundo por vezes esquecem-se de comandar a verdade, seja lá o que isso for. Sei que é difícil, quando há tanto em jogo. Mas já pensaram nas maravilhas que podem estar nas vossas caixas de correio? Eu sei que a pressão é muita, mas as palavras não são só mais um negócio. Não sei se é a sorte que catapulta alguns nomes para a ribalta, o talento ou as noites de bebedeira no centro da cidade…
… Eu sei que Hemingway era um alcoólico, Pessoa tinha uma relação bastante instável com o ópio. Tenho a certeza que os seus manuscritos esbarraram com a sorte numa dessas madrugadas de loucura…
… Mas alguns de nós são bichos do buraco, com medo de pôr a cabeça de fora, e quando a pomos é o rebuliço, a confusão: as nossas palavras ignoradas, as ideias seladas em gavetas.
Acho que até mesmo os grandes senhores, depois de um longo dia, se deitam nos seus sofás e, apesar de não o admitirem, são subscritores da Netflix e estão viciados na Casa de Papel. E se, um qualquer português escondido no seu fato e gravata, tiver guardado o antídoto para agarrar os portugueses aos livros, à tela, à televisão? – isto é, sem recorrer às velhas ferramentas de sexo gratuito ou ao assassinato do amante. Já estamos cansados da modelo que se vingou da mãe, dos irmãos que se apaixonam sem o saber – versões baratas d’ “Os Maias” que vendem revistas cor-de-rosa.
Não era já tempo de mudar as fórmulas? Apostar em ideias arriscadas pela primeira vez? Não caiamos no erro de esquecer Van Gogh, que só foi recordado depois de morto.
… Talvez os escritores assim estivessem menos sozinhos. Talvez já não dependessem dos jogos do totobola. Talvez assim a cultura portuguesa pudesse ser mais do que a telenovela e o mexerico. Talvez assim estivéssemos perante a cultura do agora: uma nova era renascida das trevas… e não na era do escritor desempregado.”
Texto de Ana da Cunha
A Ana é licenciada em Teatro-Interpretação pela ESMAE, tendo recentemente terminado uma pós-graduação em Dramaturgia e Argumento. É também atriz e escritora.