Marco Mendonça estreia o seu primeiro espetáculo a solo sobre a história do “Blackface” em Portugal
Explorar os limites do que é ofensivo fazer em palco traduz “Blackface”, de Marco Mendonça, espetáculo em cena de hoje a domingo no Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, que usa a técnica para expor formas racistas de representação.
Ao mesmo tempo, “Blackface” é também “um objeto de entretenimento“, que procura “pôr as pessoas a rir, mesmo com um tema extremamente sério e importante”, num alerta à facilidade com que “todos podemos cair numa ignorância coletiva“, disse à Lusa o seu autor.
“Blackface” ou “Cara negra”, em tradução literal, é um espetáculo-performance sobre a prática com o mesmo nome, que começou a ser usada por brancos, no sécxulo XIX, para representar pessoas negras escravizadas, pintando a cara, disse à agência Lusa o ator e encenador, que concebeu a atuação.
A técnica terá “surgido nos Estados Unidos ainda durante o período da escravatura”. A partir do uso de rolha queimada, tinta ou graxa, os brancos pintavam a cara para representar “pessoas negras em contextos de opressão”, observou.
Através daquela técnica, os negros eram sempre representados como “caricaturas, como corpos cómicos, como pessoas imitáveis e risíveis”, frisou.
O espetáculo retoma, pois, o uso dessa técnica, que ainda é utilizada, e tenta “explorar os limites do que é ofensivo para ser feito em cima do palco”, trazendo também um “bocadinho dessa temática para o contexto português”, “quer em termos culturais, quer em termos de entretenimento de massas”, observou.
Ainda “bastante utilizado nos dias de hoje, mais do que aquilo que se possa pensar”, a técnica de pintar a cara para representar pessoas negras continua a ser utilizada quer em programas de televisão, quer em práticas sociais, observou o ator nascido em Moçambique em 1995, e a viver em Lisboa desde 2007.
“Mesmo que seja em jeito de homenagem” continuam a ser “muito recorrentes as formas racistas de representação de corpos negros”, argumentou Março Mendonça, citando a propósito o “Baile dos pretos”, uma tradição existente em Penafiel que só foi “descontinuada” em 2019.
“E porque houve uma grande revolta e um grande sentido de justiça apontado por pessoas que estavam atentas a esse problema, e que fizeram com que depois de muitos avisos e recomendações, o presidente da Câmara de Penafiel acabasse com essa tradição”, indicou.
O uso da técnica ‘blackface’ em práticas de Carnaval ou de Halloween também se mantém.
Face aos diversos eventos em que a técnica foi usada para “retratar os negros como membros inferiores da sociedade”, o ator-performer questiona ainda em palco se “será possível pensar que não há racismo em Portugal”.
“Blackface” é um espetáculo que “pretende ser, acima de tudo, um objeto de entretenimento”, assegurou o ator.
“Antes de ser um objeto de pedagogia ou o que quer que lhe queiramos chamar, é um objeto de entretenimento em que se pretendo fazer rir as pessoas mesmo que seja com um tema extremamente sério e importante”, sublinhou, assegurando fazê-lo desta forma, “à semelhança de como a técnica surgiu”.
O ‘blackface’ surgiu “como uma forma de gozo de pessoas brancas perante pessoas negras e eu tento inverter um bocadinho os papéis no espectáculo”, não sendo este “de julgamento nem de vilanização das pessoas brancas”.
“Não estou no espectáculo a dizer que as pessoas negras são boazinhas e as pessoas brancas são mazinhas; estou simplesmente a dizer que facilmente todos caímos numa ignorância coletiva e se as coisas não forem debatidas, essa ignorância continua e permanece durante várias gerações”, frisou.
O que se pretende neste momento “é que o espaço possa ser de cada vez mais discussões e que essas discussões ajudem a um sistema seja ele político, cultural, artístico, [que seja] mais plural e igualitário”, concluiu.
“Blackface”, que está em cena no TBA à margem do Alkantara Festival, terá três récitas na sala principal: hoje, às 21:00, no sábado, às 19:30, e, no domingo, às 17:30.
No domingo, a sessão terá legendas em português e inglês assim como audiodescrição e reconhecimento de palco. No final da récita, haverá uma conversa com Marco Mendonça, Gisela Casimiro e Raquel Lima (moderadora) em português, sem tradução.