Maria Vegas, a melhor voz de que ainda não ouviu falar
Reconnecting, álbum de estreia da cantautora, de 43 anos, tem passado ao lado da imprensa especializada e generalista, mas estamos perante uma das revelações musicais do ano.
Na manhã de 17 de outubro, Maria Manuela Marques levantou-se da cama às 6h30. Serviu o pequeno-almoço aos filhos — Gabriel, de 13 anos, e Madalena, de 10 —, preparou-lhes as marmitas para o almoço e deixou-os na escola. Passava pouco das 8h quando chegou à Phosphoreira, em Marvila, Lisboa, onde está o escritório da Laborela, empresa familiar dedicada à produção de porco preto alentejano que fundou em 2020 com três primos. Sozinha, a Miúda da Carne, como também é conhecida entre amigos e clientes, carregou uma carrinha frigorífica Citroën Berlingo com 300 quilos de carne fresca e presunto que chegaram essa manhã de Ourique, no Alentejo, e partiu para a peregrinação semanal a vários restaurantes. Há quintas-feiras em que chega a fazer mais de 1000 quilómetros para realizar as entregas a vários clientes, mas desta vez o dia foi mais tranquilo: “apenas” 500 quilómetros de estrada entre Lisboa, Cascais, Comporta, Montemor-o-Novo e Évora.
Quando chegou a casa, depois das 18h, os miúdos estavam a estudar; tinha sido o pai deles, ex-marido de Manuela, a ir buscá-los à escola. A empresária sentou-se ao pé das crianças a enviar faturas e responder a emails, e acedeu ao pedido delas para irem jantar fora. “Queriam tentar ficar acordados até à meia noite para celebrarem comigo”, conta. Quando regressou ao apartamento, perto das 23h, tinha à sua espera o namorado, o músico e produtor Diogo Clemente, que cerca de uma semana antes lançara o seu primeiro disco a solo, Amo-te e Outras Coisas Pra Te Dizer. Gabriel e Madalena acabaram vencidos pelo sono. Mal a meia noite chegou, Manuela não perdeu tempo: pegou no telemóvel e acedeu ao Spotify para confirmar que já estava disponível Reconnecting, o álbum de estreia que ela assina como Maria Vegas. Aos 43 anos, cumpria um sonho de miúda. “Foi como o ato de parir”, recorda. “Quando tive os meus filhos nos braços pela primeira vez percebi que faltava uma parte de mim e não sabia. Tive a mesma sensação ao ver o álbum nas plataformas de streaming, para toda a gente o ouvir. Era algo que me faltava e não sabia. Sinto que era isto que devia ter feito a vida toda. Muita gente pergunta-me porque é que só estou a fazê-lo agora, mas fiz mil coisas pelo caminho e continuo a fazer.”
Esta é uma história que começou a ser escrita nos coros da Maia, cidade onde Maria nasceu, mas que ficou em stand by até 2020. Durante essas quase quatro décadas, a agora cantautora viveu muitas vidas: foi modelo, estudou Pintura, licenciou-se em Design de Moda, teve um negócio de entrega de comida ao domicílio quando ainda estava na universidade, criou uma marca de calçado, abriu uma agência de consultoria de marca, foi diretora de marca do Sporting Clube de Portugal e criou a Laborela depois de ter estudado agricultura regenerativa. Num mundo onde se procura constantemente colocar as pessoas em caixinhas, ela é definitivamente uma mulher fora da caixa.
Das muitas peles que veste, nenhuma lhe assenta tão bem como esta. Nasceu para se despir sem medo em canções que nos abraçam, convidando-nos a entrar no seu mundo interior, e para estar em cima de um palco a cantar a sua alma. Que decida perseguir uma carreira na música depois dos quarenta, num meio dominado por gente jovem, é prova de que tem “um grande par de ovários”, como ela repete frequentemente, numa atitude desafiadora. Quis mostrar aos filhos que nunca é tarde para se perseguir um sonho. Mesmo quando tudo parece jogar contra nós.
Foi durante a pandemia de Covid-19 que, com os poucos acordes que sabia dedilhar numa guitarra, começou a escrever e compor as primeiras canções originais, num estilo que define como retro-indie-cinematográfico. “A vida fez-me parar e olhar para tudo o que havia em mim. E o que me faltava. A capacidade de nos reinventarmos acontece quando a vida não nos apresenta outro caminho. Este álbum nasceu da madurez e da confiança que me trouxe reencontrar-me”.
O sonho começou a ganhar asas em 2022 quando Paulo Furtado, The Legendary Tigerman, se cruzou pela primeira vez com as suas canções com voz e guitarra acústica gravadas no telemóvel e percebeu “imediatamente que estava perante uma descoberta única e uma voz essencial” na música portuguesa. O agora produtor de Reconnecting destaca a “escrita intimista, particular e difícil de rotular, recheada de influências que vão do indie-pop à folk, mas sempre com uma perspetiva muito pessoal e autêntica”, e a “belíssima voz e timbre único”, que evocam nomes como Nancy Sinatra, Lana del Rey, Simone de Oliveira ou Joan Baez. Argumentos suficientes para sentenciar que a música de Maria Vegas “tem claramente um lugar por ocupar no panorama musical português”.
Se The Legendary Tigerman pode ser suspeito de parcialidade, por ser o produtor do disco (que conta com a participação de outros músicos ilustres, como Diogo Clemente, que assina o tema Inconvenient Love como produtor convidado, ou Gaspar Varela, na guitarra portuguesa), o mesmo não se pode dizer de Tozé Brito, um dos nomes do Hall of Fame da música nacional. O hoje vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Autores, que apoiou Reconnecting através do seu Fundo Cultural, considera que o disco é “ar puro, diferente, sensual, sem artifícios”. “Tem tudo para ser o primeiro de muitos de Maria Vegas: canções que se ouvem em loop e ficam connosco, uma voz com uma forte identidade própria e arranjos simples que beneficiam as palavras e o timbre dos instrumentos utilizados.”
Sónia Tavares, vocalista da banda The Gift, vê na cantora uma pedrada no charco “num Portugal que amornece, preso a fórmulas de rádios comerciais. A sensualidade vocal e a essência dark e despudorada de Maria Vegas são uma benção que evoca atmosferas lynchianas, cantadas, corajosamente, em Inglês.” A paisagem cinematográfica do disco, ao mesmo tempo retro e atual, também não passou despercebida ao radialista Álvaro Costa, que considera que a cantora “faz bandas sonoras para filmes imaginários que vão existir uma noite”. Até José Avillez, o mais conceituado chef de cozinha português, se rendeu a “um álbum cheio de paixão e vulnerabilidade”, com “música deste tempo, que parece de outro”.
Com tantos elogios, é um mistério que, quase duas semanas depois do seu lançamento, Reconnecting continue a passar ao lado da imprensa especializada e generalista. Até esta quarta-feira, apenas o site da revista LuxWoman tinha publicado um artigo sobre o lançamento do disco. Alguns fatores ajudam a explicar este silêncio. Desde logo, as redações depenadas de recursos, onde jornalistas assoberbados de trabalho têm cada vez menos tempo para ver (e ouvir) fora da sua bolha. E, talvez mais importante ainda, a excessiva dependência do monopólio das grandes editoras discográficas e das suas máquinas de comunicação, que deixam um espaço muito reduzido para afirmação de artistas independentes como Maria Vegas. “A única agência de comunicação que tenho sou eu e o meu megafone”, sorri a artista.
Com Maria Vegas (voz e guitarra acústica), participam no álbum Paulo Furtado (guitarras, sintetizadores modulares e sintetizadores), Filipe Costa (teclados), Gaspar Varela (guitarra portuguesa), Diogo Clemente (guitarra acústica e sintetizadores) e David Vistas (guitarra). A mistura e masterização é de Artur David. Dos oito temas deste álbum já se conheciam três singles (e respectivos videoclipes, realizados por Pedro Ruas): Not Your Song, Ocean e The Key.
“Um disco é mesmo como um filho, porque um filho também o tens para o mundo, não o tens para ti, por muito que me custe. Passa-se o mesmo com um álbum. Esperas que seja acarinhado, que as pessoas gostem dele. Queres tratá-lo bem, que tenha o valor que merece ter”. Saibamos então apreciar este Reconnecting e cuidar dele e da sua mãe. Nasceu uma estrela.