Mas o que é que isso educa?

por José Malta,    15 Dezembro, 2019
Mas o que é que isso educa?
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Sempre que chega esta época festiva recordo-me sempre de um episódio que tive com o meu avô momentos antes de uma noite de Natal. Quando fazíamos tempo, à espera que nos chamassem para a mesa e já depois das visitas que estavam de passagem terem saído, ficámos os dois sentados no sofá ao lado um do outro. Ele estava a ver aqueles programas de televisão que qualquer miúdo detesta e eu a jogar Game Boy numa altura em que os gráficos dos videojogos ainda eram bastante pixelizados e a tecnologia de bolso completamente arcaica em relação à dos dias de hoje. Ao olhar para mim, sempre com aquele ar curioso, pertinente, mas ao mesmo tempo bem-disposto, lançou-me uma pergunta:

— Muito gostas tu de andar agarrado a isso. Que raio é que tu fazes aí?

Expliquei-lhe de um modo simples o objectivo do jogo, de uma maneira típica que um miúdo com oito ou nove anos conseguia explicar. Tratei de usar uma descrição o mais simples possível para um homem com setenta e poucos anos, com apenas a terceira classe, mas que tinha capacidades muito acima das suas habilitações académicas e que via a educação como um bem precioso. Quando já estava aparentemente esclarecido, lançou-me outra pergunta que me deixaria bastante atrapalhado:

— Mas o que é que isso educa?

Nem sei se lhe cheguei a responder ao certo, lembro-me de ter balbuciado, pois, era caso para me calar. A verdade é que esta pergunta ficou-me para sempre na memória e uso-a com frequência sempre que em conversa surge um tema irrelevante com o qual que se pode aprender alguma coisa mas que no fundo não passa de fait-diver. A educação é um dos temas de grande debate nos dias de hoje e as opiniões quanto ao seu sucesso dividem-se: uns acham que a educação em Portugal está óptima e outros acham que está pelas ruas da amargura.

Muitas vezes confunde-se o conceito de educação com o conceito de ensino, visto que há aquela máxima um bocado ultrapassada da “educação dá-se em casa” que no fundo faz um certo sentido visto que uma coisa é a educação como forma de agir e de estar e outra coisa é a educação relativa ao ensino ou à formação profissional de um indivíduo. No meio de inúmeras reformas do ensino, de alunos cada vez mais desinteressados e de programas que também não ajudam, existe cada vez mais uma banalização do nosso sistema educativo. Não podemos dizer que a educação está pior do que aquela obsoleta em pleno estado novo que obrigava a saber os conceitos na ponta da língua, à conta das reguadas ou da menina dos cinco olhos. Hoje vivemos num país onde a educação está ao acesso de todos mas existe uma variação de critérios tão brutal ao longo dos anos que é difícil criar um termo de comparação. Quem tira um curso agora não quer dizer que saiba mais ou menos de quem tirou um curso há 20 anos atrás. Para além do mais, os casos de insucesso escolar são mais evidentes nas classes mais baixas e este continua a ser um problema que deverá ser combatido nos anos vindouros de modo a que possa haver uma maior igualdade, sobretudo ao nível das escolas.

No fim de contas são os professores que levam com as culpas de tudo aquilo que há de mau no nosso sistema educativo. São culpados pelos maus resultados dos alunos, da falta de alternativas e são vistos como os grandes responsáveis por aquilo que de pior existe na nossa educação. Ao juntar o congelamento da progressão da carreira docente, não há dúvida de que os professores são a classe trabalhadora mais maltratada do século XXI. A motivação dos alunos tem que ser algo que já venha antes de entrarem dentro da sala de aula, da mesma forma quando vamos assistir a um concerto de música estamos já motivados para receber aquilo que o intérprete ou a banda canta ou toca. Se a ópera não está a ser do nosso agrado, se o guitarrista não está a ser grande coisa, ou se o contrabaixo está desafinado isso já é outra história. Os métodos muito modernos do ensino e da didática, que são cada vez mais procurados, tendem a satirizar aquilo que hoje é a educação, afastando por completo o lado poético que deveria de existir na procura do conhecimento. Os alunos são quase forçados a irem para os testes e para os exames com conceitos na cabeça sem que haja um lado crítico das coisas, despejando apenas aquilo que decoram, o que não ajuda de maneira nenhuma a melhorar o sistema educativo.

De facto, muitas vezes digo quando me mostram qualquer coisa que à primeira vista parece enriquecedor, mas que no fundo não passa de algo completamente irrelevante, “Mas o que é que isso educa?”. O que é que educam os sistemas de ensino que obrigam os estudantes a engolir e a vomitar conteúdos de modo a que o conhecimento entre por um ouvido e saia por outro? O que é que educam esses reallity shows e esses programas de televisão com elevadas audiências que não passam de lixo projectado nos ecrãs? O que é que educam os youtubers e os influencers que se auto intitulam como tal e que se julgam filósofos e pensadores livres quando apenas debitam banalidades e argumentos falaciosos? O que é que educam essas canções que fazem tanto sucesso e que não têm qualquer mensagem ou conteúdo lírico por detrás? O que é que educam os best-sellers que enchem as prateleiras das livrarias no Natal (e durante o ano inteiro), que apenas vendem pelo nome do autor e não pelo seu conteúdo que é habitualmente execrável? O que é que educa a escola hoje em dia? O que é que educa a nossa educação que divide tanto as opiniões quanto ao seu sucesso? O que é que educa o quê afinal?

Nos dias que correm é difícil dizer o que educa ou não pois estamos perante um sistema cada vez onde a avaliação de conhecimentos deixou de ser a sua base e a moda da aprendizagem através de competências é uma das estratégias que visa facilitar a vida a alunos e professores. Este tipo de aprendizagem, que apresenta pressupostos muito bonitos e simpáticos, não é algo que seja algo fácil de implementar. Para que funcione é necessário que haja o interesse dos estudantes, coisa que é cada vez mais difícil de se encontrar. É cada vez mais necessário que haja nos mais jovens um certo autodidatismo, uma procura independente de modo a que consigam adquirir uma bagagem de conhecimentos própria. Frank Zappa, guitarrista conhecido pelas suas posições controversas sobre política e educação, chegou a proferir algo deste género: “Se quiseres sexo vai para a universidade, mas se quiseres educação vai a uma biblioteca”, como crítica ao sistema educativo norte-americano enfadonho, dando a ideia de que era necessário algo mais por parte dos estudantes na procura de um conhecimento mais vasto. Hoje sabemos que nem tudo que existe no ensino educa por completo e tem de haver uma predisposição dos estudantes em reinventar o conhecimento com um toque de criatividade de modo a tornarem-se também seres independentes e não peças produzidas em série. Com internet, wikipedias, tutoriais e aulas no youtube, programas de cálculo sofisticados, e toda uma informação de fácil acesso parece que alguns desprezam ou não valorizam, ficando-se sempre pelas informações superficiais sem aprofundar o seu conteúdo de forma a arranjarem respostas e até mesmo outras questões. As questões vão continuar a existir pois são estas que dão sentido à educação e são as questões que ainda não têm resposta que conseguem fazer a sua promoção.

Sempre que chega o Natal lembro-me cada vez mais deste episódio que ficou gravado para sempre da minha memória porque mais importante do que respostas são perguntas sem resposta. Não consegui ter uma resposta concreta para aquela pergunta do meu avô quando na altura, embora ainda muito jovem, já vivenciava um sistema educativo que valorizava mais as respostas do que as perguntas. Momentos antes da noite de Natal continuo a sentar-me no mesmo sofá quando ninguém precisa da minha ajuda nos preparativos, a responder às mensagens dos votos de boas festas ou a ver os posts mais recentes no Facebook, no Twitter ou no Instagram. Consigo imaginar como seria ter o meu avô outra vez ao meu lado a olhar com aquele seu ar curioso do costume, ao ver-me a mexer no telemóvel e a perguntar-me:

— Muito gostas tu de andar agarrado a isso. Que raio é que tu fazes aí?

E eu a explicar-lhe o que são as redes sociais, as mensagens, os posts, as stories e todas essas coisas com que perdemos o nosso tempo de vida útil e com as quais grande parte de nós não ganha nada com isso. Parece que consigo adivinhar a pergunta que se seguiria de imediato:

— Mas o que é que isso educa?

E eu mais uma vez sem saber o que lhe haveria de responder.

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