Mas qual é o choque do novo modelo de acesso ao ensino superior?

por Marta Vicente,    29 Abril, 2019
Mas qual é o choque do novo modelo de acesso ao ensino superior?
Ilustração de R. Kikuo Johnson
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O Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor, veio, esta semana, a público, informar sobre o novo modelo de acesso ao ensino superior para os alunos que frequentam cursos profissionais. À semelhança do sucedido no mês anterior, quando a notícia foi dada a conhecer, gerou-se uma onda de protesto e indignação. Admito que não me chocou. O país, que rejeita o debate sobre os exames nacionais enquanto prova de acesso ao ensino superior, é o mesmo que continua a considerar medicina como o curso de maior prestígio, as artes como o caminho de quem não quer ter futuro e as universidades do interior como o último recurso. Pelo menos somos coerentes com a nossa linha de pensamento que me parece, aliás, remontar exactamente ao tempo da criação dos próprios exames nacionais, ou seja, ao fim do século passado.

Em causa está a eliminação das referidas provas da equação que dita o acesso ao ensino superior para quem, no ensino secundário, tenha optado pela via profissional. Antes de espalharmos a palavra “injustiça” por todas as nossas redes sociais e reagirmos com emojis irritados aos títulos das notícias que lemos, importa esclarecer alguns factos dessa mesma via de ensino que, não nos esqueçamos, não se esgota naquela que experienciamos na nossa escola secundária, existindo cursos profissionais nas mais variadas áreas, incluindo escolas dedicadas apenas aos mesmos, como são exemplo as escolas profissionais de música.

O primeiro facto a enumerar deve ser relativo ao modelo, até agora em vigor, de acesso dos referidos cursos. Para a média de entrada contava a média do curso, as notas de dois exames nacionais, a nota da Prova de Aptidão Profissional (conhecida como PAP, um trabalho obrigatório escrito e apresentado sobre o curso realizado) e a média da nota de dois estágios profissionais. Em segundo lugar, importa referir que, na maioria dos casos, os alunos realizavam exames de disciplinas que não integravam o seu plano de estudos sendo, por isso, obrigados a preparem-se por si, sem apoio por parte da escola. Acresce, a esta realidade, o facto de que, enquanto os alunos dos cursos científico-humanísticos dedicam os últimos meses do 12º e 11º ano à preparação exclusiva dos exames, os alunos do profissional têm de o fazer em simultâneo com a realização do estágio ou da PAP. Ora, seguindo um raciocínio lógico e querendo continuar a reclamar por igualdade, como aconteceu nesta última semana, precisaríamos de exigir, não a continuação dos exames nacionais, mas antes a realização de um estágio ou de uma PAP para ingresso no ensino superior a quem frequenta os cursos científico-humanísticos.

Dir-me-ão que não, visto que os cursos servem propósitos diferentes e, consequentemente, têm um percurso distinto; nesse sentido, não seria justo sujeitar os alunos dos cursos científico-humanísticos, cujo ensino não engloba componente prática, a provas e exercícios dessa mesma natureza. E o contrário é justo? É justo sujeitar alunos que optaram por seguir um percurso de ensino que valoriza a dimensão prática a exames meramente teóricos de disciplinas desconhecidas? Se a resposta for afirmativa, ela pressupõe, no fundo, a ideia de que um aluno que dedicou três anos da sua vida a ler, decorar e reproduzir manuais, tem capacidade para fazer uma licenciatura, enquanto que aquele que realizou trabalho prático e estágios não tem.

Poderão, ainda, afirmar que se trata de uma questão de preparação: para prosseguir estudos na universidade é necessário conhecimento adquirido em disciplinas do ensino secundário, algumas não leccionadas nos cursos profissionais. Sendo assim, onde está a contestação aos alunos dos cursos de Ciências e Tecnologias que podem fazer uma licenciatura em História sem terem tido a disciplina? Isto para frisar que, de certeza, o sucesso ou insucesso de uma licenciatura não assenta no conhecimento adquirido no ensino secundário. Para além disso, tudo é feito com peso e medida, ou seja, a probabilidade de um aluno que frequentou Multimédia decidir tirar o curso de Medicina deve rondar o zero.

Importa, por outro lado, esclarecer que a exclusão dos exames nacionais da equação não é sinónimo de um vazio nos critérios de acesso ao ensino superior. Bastava ler a notícia para perceber que a não realização das provas não significa que uns concorrem só com a média resultante das disciplinas realizadas no ensino secundário, enquanto que outros somam à média, as notas dos exames nacionais. Na verdade, considerar que o acesso ao ensino superior se esgota em médias e exames comprova o quão eficaz é o nosso ensino secundário, na forma como se estrutura, a limitar a nossa capacidade de pensamento e crítica. Mas não é preciso ir tão longe: considerar que o acesso ao ensino superior se esgota em médias e exames é desconhecer, por exemplo, o regime de acesso dos maiores de 23 anos, em vigor no nosso país, ou a realidade praticada pelos outros países europeus nos modelos de acesso dos estudantes à universidade. Relativamente à medida aprovada, o que está em causa é a criação de concursos locais, onde será atribuída, a cada universidade e politécnico, a faculdade de elaborar critérios de selecção com base nas aptidões, competências e notas dos alunos dos cursos profissionais.

Neste sentido, a questão que a medida poderá levantar não me parece ser relativa à desigualdade (como justificado, esta promove, exactamente, o contrário) mas antes sobre como expandir a ruptura implementada, nos cursos profissionais, entre os exames nacionais e o ensino superior, aos cursos científico-humanísticos. O primeiro passo é, claro, terminar com o carácter intocável de um instrumento gerado para fazer face ao contexto do final dos anos 90 e abrir o debate.

Não deve deixar, ainda, de ser referida a incompatibilidade existente entre a expressão da indignação perante a nova medida e a defesa da democratização do ensino, ideia que, em traços gerais, pressupõe que todos tenhamos as mesmas oportunidades de acesso a este. Ora, as estatísticas mais recentes da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência evidenciam que, um ano após a conclusão do ensino secundário, 80% dos jovens que frequentaram cursos científico-humanísticos são encontrados a estudar na faculdade; a mesma situação, avaliada na óptica dos cursos profissionais, revela uma percentagem de, apenas, 16%. No mesmo estudo, conclui-se que o tipo de ensino frequentado no secundário é um factor de maior limitação ao acesso ao ensino superior do que a condição socioeconómica. Uma resposta a estes dados será a de que os cursos profissionais são gerados com o objectivo de colocar, no fim do 12º ano, os alunos no mercado de trabalho e que, portanto, se justificam pela própria motivação e desejo dos estudantes em integrar o mundo laboral. Não deixa de ter um grande fundo de verdade, mas supor que cerca de 45% da totalidade dos alunos que frequentam o ensino secundário não quer prosseguir estudos e, consequentemente, não se atente às suas necessidades na matéria, é reforçar o processo de segregação do ensino na medida em que se coloca o “monopólio” do acesso ao ensino superior meramente à disposição daqueles que concluem um curso científico-humanístico. A mesma suposição implica considerar algo ainda mais absurdo, que, no final do 9º ano, os jovens conseguem dizer com total certeza que não querem frequentar a universidade.

O ensino superior deve encontrar-se ao alcance de todos. Ligá-lo ao ensino secundário através de um mecanismo como é o exame nacional e propagar a ideia de que os cursos profissionais não são para quem quer estudar numa universidade ou politécnico, é limitar, desde logo, o seu acesso. É, mais do que isso, desincentivar o prosseguimento de estudos para lá daqueles que são obrigatórios. De 28 países na União Europeia, ocupamos a 24ª posição na percentagem relativa à população com ensino superior. Penso que, em 2019, não é necessário enumerar as vantagens da educação, na sua generalidade, e de um curso superior, em particular.

Como referido no início deste artigo, a reacção a esta notícia é um espelho do país que ainda temos. Um país que continua a considerar os cursos profissionais a opção para os jovens menos capazes ou a olhar de lado para quem, com um bom desempenho escolar, opta por seguir música em vez de medicina. O mesmo país que me obriga, aliás, a recorrer à medicina como fonte de todos os exemplos deste texto. Com certeza, não é este o país que desejamos.

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