Medeia Filmes disponibiliza de forma gratuita três filmes de Yasujiro Ozu
A Flor do Equinócio, O Fim do Outono e Bom Dia disponíveis no site da Medeia Filmes, entre os dias 19 e 26 de maio.
A singularidade do cinema de Yasujiro Ozu pode ser mesmo o melhor antídoto em tempos de pandemia. Até porque o cinema em casa tornou-se num hábito doméstico regular, sugerindo-nos a disponibilidade para revisão e descoberta de filmes clássicos. A Medeia Filmes faz a sua parte sugerindo a programação cuidada Filmes da Quarentena, disponíveis via streaming no site oficial.
Já depois dos encontros obrigatórios com Jacques Tati (Há Festa na Aldeia), Lars Von Trier (Melancholia), Mike Leigh (Segredos e Mentiras) ou Nanni Moretti (Minha Mãe), chega finalmente a vez do cinema único de Yasijiro Ozu, em exemplos maiores da derradeira fase da sua carreira (entre 1958 e 1960), em que a opção da cor se conjuga com a mais perfeita das depurações de um cinema que se adequa bem ao que podemos apelidar de cinema zen. Nesse sentido, dificilmente a escolha poderia superar a proposta dos dramas familiares A Flor do Equinócio (de 19 a 21 de maio), O Fim do Outono (21 a 23) e ainda a comédia Bom Dia (de 23 a 26), todos eles apresentados em sala, em 2014.
Desde logo, pode dizer-se que as narrativas de A Flor do Equinócio e O Fim do Outono parecem cruzar-se ao longo de ambos os filmes – o que de resto se estende a muitos filmes do cineasta nascido em Tóquio a 12 de dezembro de 1903 e falecido na mesma cidade no dia no seu 63.º aniversário.
No primeiro caso, o pai opõe-se à escolha amorosa da filha, pois não foi uma decisão acordada por ele, ao passo que em O Fim do Outono é um grupo de amigos que escolhe um pretendente para a filha de um deles. E vão até mais além na procura de um marido para a mãe viúva, de modo a facilitar a escolha da filha.
Nos dois primeiros casos, A Flor do Equinócio e O Fim do Outono, o espetador sente o conforto de uma certa repetição de espaços, quase sempre meticulosamente enquadrados no ecrã como se de um quadro zen se tratasse ou mesmo de uma cena retirada do teatro Nô. Na verdade, há muito desta arte ancestral do cinema de Ozu mesmo que adaptada para a atualidade japonesa, num diálogo permanente entre o os rituais ancestrais e um desejo permanente de mudança. Algo que se vê também na divertidíssima e refrescante revolta dos pirralhos em Bom Dia, ao declarar um estado de vingança por os pais se recusarem a comprar uma televisão (lá está o presente-futuro a bater à porta do conservadorismo).
Nos dois dramas e em grande parte da sua filmografia, a ação decorre invariavelmente em situações de grupo, seja na sala em casa, numa reunião no escritório da empresa, no bar ou no restaurante. Aí, entre a banalidade de algumas conversas, tomam-se igualmente decisões sociais bem relevantes. Há até objetos mundanos que parecem viajar de um filme para o outro (e neste duo em particular), como a chaleira para aquecer a água do chá, a presença das garrafas de whisky, como que a recordar a vontade desta sociedade em ultrapassar o pós-guerra e seguir em frente.
É frequente no cinema de Ozu a sensação de estarmos a ver o mesmo filme, com pouquíssimas variantes, num constante diálogo entre o presente e o passado. Ao fim e ao cabo, um tratamento profundo do tempo. Mesmo que sem nunca abandonar um estilo sereno composto invariavelmente por planos fixos e um ponto de vista em que a câmara está ao nível da posição de alguém sentado numa almofada, as famosas ‘tatami shots’, longamente comentadas por Wim Wenders no seu documentário de 1985, Tokyo-ga, justamente dedicado ao mestre Ozu.
Com uma larga carreira, iniciada ainda durante o cinema mudo, Yasijiro começou por criar elementos de comédia até se dedicar a um estudo cada vez mais profundo e meticuloso das relações familiares, explorando as suas variantes, num conjunto de filmes que receberam ao longo dos tempos um reconhecimento crescente na apreciação da forma como veio tratando uma certa desagregação familiar no Japão do seu tempo. Sobretudo durante o período do pós-guerra e da crescente influência e presença americana.
Nesse sentido, O Fim do Outono será o melhor contraponto com o assombroso Primavera Tardia, de 1949, pela forma como Ozu sente vontade de regressar a esse momento, a esse tempo. De certa forma ao sorriso belo e enigmático de Setsuko Hara, a eterna virgem inalcançável, que se tornou numa das maiores vedetas femininas do Japão mas que saiu de cena, misteriosamente, depois do falecimento do mestre Ozu, em 1963, numa altura em que era possivelmente uma das presenças femininas mais marcantes do seu cinema. Ela que tem dois dos seus grandes momentos, precisamente em A Flor do Equinócio e O Fim do Outono, além de Viagem a Tóquio, de 1953, e, precisamente, Primavera Tardia. Incontornável também Chishû Ryû (possuidor de uma imponente filmografia com quase três centenas de filmes) e ator indispensável de Ozu, apenas não participando em dois dos 54 filmes do mestre, bem como o muito experiente Shin Saburi, presente em Equinócio e Outono, Nobuo Nakamura ou Ryûki Kita, todos eles recorrentes neste dois filmes irmãos – mais do que em Bom Dia, na verdade um remake do filme mudo de 1932, I Was Born… But.
O que dizer deste cinema que parece sublinhar o conservadorismo, mas que de forma subtil está sempre a assinalar o presente e a apontar para o futuro? Algo que diz seguramente muito sobre o ser japonês, sobre o Nô, no fundo, sobre a impermanência do cinema de Ozu. É por isso mesmo também um cinema muito ligado à ideia temporal, ao espaço-tempo de que nos fala Gilles Deleuze, desde logo pela novidade que imprime à imagem, substituindo-a por algo imprevisto. Seja uma imagem perene de um monte, um objeto, um corpo.
É também nessa ‘repetição’ que importa retirar o devido conteúdo. Mesmo as atitudes de mais insólitas de certas personagens, por vezes até inexplicáveis, como as cenas em que, sem qualquer razão que o justifique, uma personagem pede desculpa para ir à casa de banho (algo que acontece, por exemplo, nos dois dramas familiares que veremos). A incredulidade de certa forma picante está patente no uso de um isqueiro com demasiada chama por um homem quando se referir à uma mulher que deseja. Ou então no longuíssimo gag dos gases intestinais celebrados pelos meninos de Bom Dia, quase usados como se tratasse de um modo de comunicação secreto.
Igualmente recorrente o movimento dos comboios que passam, a roupa a secar, como referentes temporais, ou até a aparência pelas cenas de refeição e o prazer das conversas regadas a saké, cerveja ou uísque. Aliás, segundo rezam as crónicas, um ritual bastante apreciado pelo próprio cineasta durante os períodos de escrita do guião, que rezam as lendas, se mediam pelas garrafas de saké que bebia.
É comum associarem-se os mais rasgados elogios a Ozu e ao seu cinema meticuloso, sempre muito perto de um lado sublime, ainda que talvez o mais importante seja mesmo a sua descoberta. Diríamos um cinema doméstico muito acertado para estes dias de convívio familiar. Porque por aqui passam os temas recorrentes das relações familiares, os tradicionais arranjos de casamento tão vincados na cultura nipónica. Na verdade, esse lado da tradição e da família é absolutamente central, ainda que seja erróneo pensar que se trata de um cineasta conservador.
De certa forma, estamos em presença nestes casos de um ascetismo de mise en scène já muito evidente nesta fase a dispensar movimentos de câmara e introduzindo aquilo que o autor chamou de “momento decisivo”, um ato ou imagem que nos surge de uma forma inesperada, acabando por propiciar uma realidade paralela, afinal de contas a tal transcendência. Isto ainda antes do filósofo Gilles Deleuze expressar essa fenomenologia da perceção através do tempo, do célebre conceito da passagem da imagem-movimento à imagem-tempo, presente na sua Obra Cinema 1 e, sobretudo, em Cinema 2, de 1983 e 1985.
De resto, o cineasta, e antes disso escritor, crítico de cinema e seminarista, Paul Schrader encontrou neste cinema grande parte do sentido transcendental que procurava no cinema, aquilo que definiria como a “potencial desunião entre o ser humano e o seu ambiente” aliado a “uma fratura aberta e crescente na monotonia do quotidiano” de resto plasmada na obra fundamental Trancendental Style in Film – Ozu, Bresson, Dreyer, editada em 1971, e recentemente republicada, sobre o elemento espiritual presente neste trio de cineastas, alargado na edição de 2018 ao conceito de slow cinema, em que integra também cinema dito não narrativo de Béla Tarr, Lav Diaz, ou Pedro Costa, entre outros.
Por tudo isto, se percebe o enorme prazer no momento em que surge no ecrã aquele genérico, invariavelmente projetado sobre um pano de serapilheira, transportando-nos para um território e ambiente que se tornou bastante familiar (ou então quando nos passa a ser familiar), devolvendo-nos o que por vezes se parece mais como um provérbio filmado do que propriamente um filme. É aí, nesta dimensão universal, que o cinema de Yasujiro Ozu se transforma em algo que supera o próprio cinema.
Artigo escrito por Paulo Portugal, originalmente publicado em Insider.pt