Medicina Interna, o coração do hospital

por Cronista convidado,    15 Junho, 2022
Medicina Interna, o coração do hospital
Fotografia de Martha Dominguez de Gouveia / Unsplash
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Vou falar-vos do que é viver no coração do hospital durante 4 meses, de desafios, mortes, dor, incertezas e muito amor ao ser humano e à camisola.

Durante 4 meses trabalhei num serviço de Medicina Interna de um hospital português, enquanto pessoa médica interna em formação geral, o que significa na prática, que tinha a meu cargo doentes que tinha de observar, examinar, e propor um tratamento discutido com a pessoa que fosse minha orientadora.

O meu primeiro dia neste estágio começou com um turno de urgências de 12h. Nada melhor que 12h de observação de doentes, potencialmente instáveis, depois de meses de inatividade prática, em estudo teórico de medicina. Tremiam-me as pernas. Era precisamente o serviço de urgência o local que mais receava encontrar, no contacto hospitalar, acima de tudo, pelo medo do que acabou por ser o primeiro momento do dia: o contacto com a morte. Dois minutos para ir ao pátio chorar, e o trabalho seguiu comigo anestesiade. 

No final do dia, conheci também o sentimento do primeiro contacto com familiares que desesperam por notícias (e nos culpam pela sua ausência) e da síndrome de impostor. Criou-se em mim o maior desconforto com este serviço. Percebi o quão fácil era deixar-me tornar insensível, para meu conforto, de ver doentes apenas pelas suas doenças, e não pelas pessoas que são. Durantes os vários turnos de urgência, tentei procurar o equilibro constante entre não me deixar apegar e não permitir que a minha ação fosse fria e desprovida de empatia.

Esta luta interna foi-me flagrante no serviço a que fomos alocades no primeiro mês deste internato: serviço de doentes com doença covid. À vez, equipávamo-nos com todo o material necessário para nossa segurança e em equipa víamos doentes isolados, alguns com pouco (ou nenhum) contacto com a família, da forma mais rápida e eficaz, com o menor risco de contágio possível, tentando não deixar nenhum sintoma por ver ou tratamento por ajustar. Era particularmente desafiante, pela limitada comunicação que os fatos permitiam, e pela quantidade de doentes que observávamos, alternando os nossos com os de colegas, que ficavam à porta enquanto transmitiam as suas indicações, por gestos, berros e papeis amachucados.

No final do turno, tirando os fatos, eram visíveis as marcas do equipamento cravadas na pele da cara, e na alma, com a certeza de que tínhamos feito o melhor naquele dia. E mesmo não querendo, regressávamos no seguinte, talvez com um doente diferente naquela mesma cama. Não perguntava, mas sabia o que tinha acontecido, tentava só adormecer o sentimento.

Voltamos a ser um serviço de medicina interna comum, ao fim de um mês, quando se começou a registar uma diminuição de casos e internamentos covid. Comecei a poder ver, falar, investigar, ouvir e compreender as pessoas internadas, sem restrição… ou com restrições diferentes…

A exigência manteve-se, não só a nível físico e emocional, mas principalmente a nível clínico e intelectual. Sempre sobre tutoria, era-me suposto criar uma conversa aberta com a pessoa doente, retirar a informação clínica relevante para descobrir a origem dos sintomas, gerindo-os, diariamente. O ambiente tornou-se mais pessoal, pude “invadir” e compreender vidas de doentes e famílias, numa tentativa de encontrar o que causava a doença e o internamento. 

Apaixonei-me pela discussão em equipa, pela forma como as pessoas mais experientes abordavam cada caso, pela conversa com a família e pelas técnicas de comunicação que ia desenvolvendo, pelo jogo entre revelar só aquilo que me era permitido, e aquilo que era essencial transmitir. 

Desmotivei-me pelas dificuldades. Especialistas assoberbas de trabalho, com doentes que iam somando, acima do que é humanamente possível. Em turnos de urgência de 24 horas, que continuavam com um saltinho rápido no internamento, uma palavrinha ao familiar, uma visita da direção, um jeitinho a colegas. E no dia seguinte estavam lá outra vez, e o descanso tornava-se efémero. Surgia mais trabalho em compensação de colegas que faltavam porque o burnout já lhes consumia o raciocínio. A revolta de ter sobre si mais responsabilidade do que a que devia, e a culpa que ia atribuindo a colegas que faltam, a técnicos que “não colhem sangue por incapacidade logística”, à enfermagem que apenas realizou “os serviços mínimos e essenciais”, desmotivava-nos. Sabemos que a culpa não é de profissionais de saúde, mas um sistema que nos capitaliza e obriga a fazer o esforço extra, “pelo bem dos doentes”… sempre pelo bem dos doentes, até ficarmos nós doentes. E na semana seguinte repete-se tudo mais vez.

Precisamos urgentemente de políticas de valorização de profissionais de saúde. De meios técnicos e recursos humanos. De reforço nos cuidados primários, e nos cuidados continuados. De uma rede de apoio social mais forte, principalmente a famílias e doentes idosos. Precisamos de trabalhar a saúde mental de toda a população. Sem isto, continuaremos com a sobrecarga de profissionais de saúde, até à sua exaustão, até deixarem o SNS ou o país.

Termino com uma nota positiva: gostei muito de medicina interna. Aprendi imenso, senti-me útil, responsável e trabalhei muito. Não sei se tenho força para me dedicar a vida toda a esta especialidade, mas tenho a certeza que o vício de trabalhar em equipa, de conseguir ajudar e ter um impacto real na vida (ou morte) de doentes me deixaria uma pessoa realizada. Veremos…

Crónica de Jo Correia Rodrigues.
Pessoa médica, ativista LGBTI+ e defensora de direitos humanos.

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