Medo e delírio em Estado de Emergência

por José Malta,    10 Abril, 2020
Medo e delírio em Estado de Emergência
Fotografia de pawel szvmanski / Unsplash
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Desenganem-se aqueles que, ao lerem este título, possam pensar que vem aí mais um texto para andar a saltitar nas redes sociais, a incitar o pânico com notícias falsas ou a menosprezar o alastrar da pandemia que está a conseguir afectar o mundo inteiro. Na verdade, este título é inspirado na célebre obra de Hunter S. Thompson “Medo e Delírio em Las Vegas” (Fear and Loathing in Las Vegas), publicado em 1971, sendo uma das peças mais icónicas de um movimento literário denominado por Jornalismo Gonzo. O livro relata a aventura do autor e do seu advogado em Las Vegas, numa viagem que prometeria medo e delírio suscitado pelo álcool e pelas drogas que ambos consumiriam, numa busca pelo mito do “sonho americano”. Em 1998 o filme fora adaptado ao cinema com Johnny Depp a interpretar o papel de Raoul Duke, alter-ego do escritor, e Benicio Del Toro no papel do seu advogado. A história nada tem a ver com a situação com que nos deparamos de momento, numa luta contra uma pandemia que parece não ter fim. Porém, o título consegue encaixar que nem uma luva no estado de emergência em que vivemos, tendo em conta as mais recentes atitudes manifestadas por certas pessoas. Por um lado temos o medo, um medo que é comum numa situação de emergência mas que em certos casos consegue estimular um pânico e um fanatismo exacerbados que se juntam às teorias da conspiração correntes. Por outro temos o delírio por parte daqueles que são excessivamente optimistas ou que ignoram as indicações das autoridades competentes e que continuam a fazer a sua vida normal e a passear aos fins-de-semana como se nada fosse.

Ninguém disse que estes seriam tempos fáceis, apesar de existirem pessoas que conseguem lidar com esta situação melhor do que outras. Tivemos que nos adaptar a uma série de factores para que fosse possível dar continuidade às nossas actividades profissionais e a outras funções que conseguissem ser feitas fora do nosso local de trabalho. O chamado teletrabalho, que levou a que muitos de nós passassem a trabalhar a partir de casa, pode ser vantajoso para uns, mas também um fardo para outros. Nem todas as pessoas têm condições para trabalharem em casa e ter um rendimento semelhante àquele que têm no seu local de trabalho. O mesmo acontece com as aulas e os professores que passaram a adoptar uma estratégia virtual de ensino, vista por muitos adeptos dos métodos modernos da didática como um caso de sucesso mas que, para além de não ser comparável ao ensino presencial, leva a que haja uma disponibilidade de 24 horas por dia de ambos os lados. Existem estudantes, nomeadamente os mais carenciados, que não têm todas as ferramentas para este acompanhamento. As incógnitas de como é que será a avaliação dos alunos, visto que deixa de haver um elemento fidedigno de avaliação, necessitam de ser clarificadas pois parece não existir um modelo claro. Claro que existem os trabalhos, os testes on-line e esse contacto permanente entre estudantes e docentes. Já existem universidades que cancelaram as aulas até ao fim do segundo semestre, levando os exames para as épocas extraordinárias, mais próximas do início do novo ano lectivo. Quanto ao ensino básico e secundário, o desfecho quanto às notas finais e aos exames nacionais é algo que ainda permanece incerto, embora o governo pretenda o regresso das aulas do secundário com exames nacionais, nomeadamente nas disciplinas com exames nacionais.

Somos uma espécie que tem inerente uma condição de socialização permanente. Gostamos de conviver uns com os outros, de partilhar afectos, e de estar em contacto com aqueles que mais gostamos. De repente ficámos mergulhámos, e mais do que nunca, numa dependência pelo ecrã que não nos larga, seja pelo ecrã do televisor, do telemóvel ou do computador. Acordamos de olhos no ecrã, trabalhamos em frente ao ecrã, esperamos pelos novos números de infectados com vista para ecrã, comunicamos pelo ecrã, vivemos dependentes do ecrã e o nosso dia-a-dia passou a ser o ecrã. É evidente que esta situação nos leva para os mundos distópicos de George Orwell ou Aldous Huxley como há quem faça comparações que no fundo fazem um certo sentido. Essa distopia não se resumirá apenas e só ao factor de estarmos dependentes do ecrã. Os despedimentos têm vindo a suscitar um clima de preocupação e de instabilidade por parte de muitas famílias, sendo esta uma situação delirante que amedronta, e com razão, muitas pessoas. As ruas e as estradas desertas, os estabelecimentos fechados, mostram sinais de que os tempos mudaram. As pessoas que estão mais sozinhas e que passam por dificuldades sociais e financeiras não estão a passar um bom momento.  Nem todos sabem conviver com a solidão, é sempre muito duro estar só numa situação destas. A questões do foro mental na população é algo que levanta preocupação, com uma certa razão. Somos capazes de cometer graves disparates devido à solidão e há que estimular uma certa criatividade da nossa parte ao reinventar o nosso espaço, coisa que nem sempre é fácil.

Os profissionais de saúde, incansáveis, não dão tréguas e têm sido os grandes heróis, arriscando as suas vidas neste combate, passando mais tempo longe dos seus ente-queridos. Sem medos e sem delírios, são eles quem enfrentam todos os dias aquele que é o perigo do momento. Serão sempre poucos os aplausos que ecoam nos prédios ao cair da noite para compensar o esforço físico e mental destes homens e mulheres. Ao juntarem-se as instituições, as empresas, as universidades e os serviços que não param e que oferecem ideias inovadoras que visam promover o combate à pandemia, e que têm sido uma enorme ajuda, tornam a vida destes profissionais um pouco mais fácil do tão difícil que já é. A solidariedade entre todos tem sido notória e esta é uma das muitas coisas que devemos tirar partido desta enorme crise. Alguns serviços pagos que se tornam gratuitos ou de preço reduzido nesta época, a interacção nas redes sociais e a criatividade de alguns artistas e humoristas é algo que se faz notar e que consegue aliviar dos dias monótonos que muitos de nós sentimos. As redes sociais estão mais activas do que nunca, de forma a que consigamos interligar com mais pessoas. São muitos os desafios, os jogos, os quizzes promovidos para que todas as famílias possam arranjar maneira de conviverem internamente, de miúdos a graúdos. Também há que realçar que nem todos vivem num ambiente familiar estável, onde todos se convivam e interagem de igual modo. Podem acontecer coisas obscenas, fora do nosso imaginário, dentro dessas mesmas casas que nem vale a pena sequer imaginar.

São nestas situações que o medo e o delírio, ao reagirem entre si, conseguem gerar substâncias altamente nocivas, e isso está muito além dos efeitos que a epidemia exerce sobre nós. Aparentemente surgiram suspeitas de erros de contagem dos dados dos infectados num dos boletins da DGS que nos levou a questionar a veracidade dos números que conhecíamos. A China tem sido alvo de acusações da manipulação de informação, onde a questão da veracidade do número de vítimas mortais é algo que gera bastante controvérsia. Na Hungria, país cujo funcionamento da democracia gera grande debate, o parlamento atribuiu plenos poderes ao governo em vez de decretar um estado de emergência propriamente dito, colocando o país numa posição semelhante à de uma ditadura. No Reino Unido, o primeiro-ministro que queria desenvolver a imunidade de grupo, sem impor qualquer tipo de medidas, encontra-se infectado e o país caminha para uma situação descontrolada. Nos Estados Unidos da América, o presidente que desvalorizou a epidemia, num estado de delírio, age agora, com uma atitude de medo que nunca tinha antes manifestado ao impor medidas que evitem um maior contágio da população. No Brasil, a grande figura da nação continua numa situação de delírio, ao ter desprezado toda o alarmismo, afirmado que dado o seu histórico de atleta jamais será afectado pelo vírus. A investigação na busca por uma vacina que consiga curar pessoas é algo que está a começar a ganhar avanços, mas entram protagonistas a querem aproveitarem-se de diversas maneiras desse feito, caso o consigam, como forma de lucrarem com a situação. Ao invés de tal feito nos trazer apenas e só um enorme alívio, pode também trazer consigo algum receio no que toca ao modo como essa vacina irá ser distribuída ou comercializada e se esta conseguirá chegar a todas as populações. As medicinas alternativas também se têm aproveitado da pandemia ao quererem assegurar que os seus métodos são altamente eficazes no alívio de sintomas e até na cura ou prevenção do vírus, incentivando ao delírio. São situações destas onde a verdade é suspeita de estar distorcida ou omitida, e onde as atitudes de alguns responsáveis são altamente sinistras, que o medo e o delírio conseguem atingir níveis demasiado elevados.

Não será nem o medo nem o delírio que nos irá devolver a nossa condição humana que hoje se encontra paralisada, mas sim a nossa consciência. A consciência de que este é o momento onde a nossa união deve prevalecer sobre tudo o resto, independentemente das gerações, condições sociais, posições políticas e religiosas de cada um. Não haja dúvida que este é uma luta que envolve o trabalho de todos sem excepção e que ainda haverá um longo caminho a percorrer. Certamente que as coisas irão voltar a ser semelhantes ao que eram dantes, mas com grandes diferenças sociais e económicas, do mesmo modo que certamente iremos superar tudo isto se mantivermos a nossa consciência livre de todos esses medos e delírios. Iremos tirar lições sobre este capítulo da nossa história que é feita por todos nós e será necessário reflectir sobre o que se passou nestes últimos tempos. No dia da redenção, que será gradual, seremos capazes de sair desse medo e convém evitar cairmos em delírios que possam ser perigosos. No dia em que sairmos das nossas cavernas, onde passámos a ser sombras como as sombras que se encontram dentro dessa ilustre alegoria da República de Platão, iremos olhar para nós mesmos e para aquilo que nos rodeia com nunca antes tínhamos olhado. Iremos valorizar coisas que dantes não valorizávamos e a desvalorizar coisas que valorizávamos em demasia, até que voltemos às atitudes do costume, valorizando e desvalorizando essas mesmas coisas como dantes. Iremos renascer de novo para um mundo também igualmente novo, onde voltaremos com um enorme esforço a viver esses dias que aparentemente eram tão banais. Serão tempos em que iremos mais do que nunca, tal como a célebre canção dos Foo Fighters, Times Like These, que nos incentiva a aprender a partilhar e a amar novamente, voltar a vestir a nossa condição humana ao aprender a viver novamente num mundo que já estava dominado pelo medo e pelo delírio muito antes da pandemia. E assim será.

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