“Memória das minhas putas tristes”, de Gabriel García Márquez: uma alegoria à luxúria pelo fruto proibido
O último livro escrito por Gabriel García Márquez (1927-2014), autor Colombiano e Nobel da Literatura de 1982, é uma óptima e breve introdução ao Realismo Mágico. Esta vertente literária, com bastante incidência na literatura Sul-Americana, visa cerzir características fantásticas com contextos mundanos da narrativa, cruzando pensamentos, acções e percepções fantasiosas com a “normalidade” do dia a dia das personagens.
Em “Memória das minhas putas tristes”, Márquez retira inspiração conceptual da obra “A casa das belas adormecidas” de autoria do escritor japonês Yasunari Kawabata, também ele reconhecido pela sua influente obra com um Nobel da Literatura em 1968.
A história é narrada pelo personagem central da história, jornalista e cronista de um jornal local. Perante o assombro da proximidade dos seus 90 anos de vida, pondera sobre qual a melhor maneira de assinalar tal feito de longevidade.
“Há já alguns meses previra que a minha crónica de aniversário não fosse o habitual lamento pelos anos passados, mas na realidade o contrário: uma glorificação da velhice.”
“Memória das minhas putas tristes”, livro de Gabriel García Márquez
Frequentador assíduo de bordéis, concluiu que o que estaria à altura de tal celebração, e o satisfaria, seria passar uma “noite de amor louco” com uma adolescente virgem. Põe em marcha este plano entrando em contacto com Rosa Cabarcas, dona de um bordel um tanto ou quanto duvidoso. Esta encontra a candidata perfeita numa jovem rapariga chamada Delgadina. O primeiro vislumbre da jovem na cama do bordel, é para ele uma experiência intensa: “Entrei no quarto com o coração enlouquecido e vi a menina adormecida, nua e desamparada na enorme cama de aluguer, como a pariu a mãe. Jazia meio de lado, de cara para a porta, iluminada do tecto por uma luz intensa que não perdoava qualquer pormenor. Sentei-me a contemplá-la na borda da cama com um deslumbramento dos cinco sentidos.”
Convém frisar: esta não é uma história que glorifica qualquer tipo de pedofilia ou exploração sexual, trata-se de uma alegoria à luxúria pelo fruto proibido, numa perspectiva idealista e do desejo impraticável de controlo da experiência fantasiosa, ao ponto de a tornar quase inatingível para o narrador.
A letárgica Delgadina torna-se gradualmente uma entidade quase simbólica. Nela se projecta o recém descoberto desejo de amar por parte de alguém que pressente como estando próximo o fim dos seus dias. “A verdade era que não podia com a minha alma, e começava a tomar consciência da minha velhice pelas minhas fraquezas face ao amor.”, pode ler-se na página 88 do livro.
É cativante testemunhar a transformação íntima do protagonista ao longo da história, passando de um idoso conformado com o seu destino para uma renovada paixão pela vida e pelas mulheres, onde os significados do amor tomam proporções que nunca achou possíveis, confessando mesmo: “Tornei-me de lágrima fácil. Qualquer sentimento que tivesse qualquer coisa a ver com ternura provocava-me um nó na garganta que nem sempre conseguia dominar…”
Toda a idealização dos acontecimentos por parte do velho jornalista possui contornos surreais e tristes que refletem, talvez, o sentimento do autor em relação à fragilidade da sua própria velhice (contava com 77 anos à data da publicação). Márquez oferece-nos, por uma última vez, uma narrativa crua mas vincadamente poética e que cativa pela constante reflexão sobre o passado, presente e futuro do narrador. Corre-se o sério risco de ler “Memória das minhas putas tristes” de uma vez só, na ânsia de descortinar os destinos desta aventura surpreendente.