MEO Kalorama (dia 1): a música como acto político

por Tiago Mendes,    30 Agosto, 2024
MEO Kalorama (dia 1): a música como acto político
Sam Smith / Fotografia de Sofia Rodrigues – CCA
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De um cartaz significativamente omnívoro ao nível dos géneros musicais representados – à primeira vista parecia até excessivamente heterogéneo – a primeira noite do MEO Kalorama acabou por ter um sabor surpreendente coeso. A várias línguas e linguagens se defenderam coisas semelhantes: a música pode ser – e é – esse palco em que se afirma a liberdade da identidade, o valor da empatia e da causa política. Se o concerto dos Massive Attack foi a definição maior dessa intervenção no espaço público, foram múltiplas e diversas as vozes que contribuíram para esse vasto bouquet, potenciado por uma representatividade de género (e não só) verdadeiramente digna de um festival do século XXI. O público esteve à altura do convite e provou que, em Lisboa, há quem tenha esse super-poder que é saber ouvir e fruir músicas tão diferentes umas das outras.

Começamos a tarde no Palco Lisboa, com o projecto de Filipe Catto que apresenta uma homenagem a Gal Costa, “a deusa”, de acordo com as palavras da artista brasileira. “Belezas São Coisas Acesas por Dentro” é um álbum que vale a pena ir ouvir. A partir de um repertório de canções muito queridas ao público, os arranjos de Catto e da sua banda mergulham num terreno criativo, psicadélico, procurando rumos novos para o MPB de Gal. “Nada Mais” é um dos temas que mais nos arrepia; “Vaca Profana” será talvez o que mais faz ressoar entusiasmo no público (não fosse a energia de Catto absolutamente contagiante neste segmento do concerto). A dicção e a doce voz da cantora conferem a cada palavra um peso bonito; é uma performance melódica, expressiva, que enfeitiça desde os primeiros segundos do concerto. Mas também o seu comportamento em palco, a atitude teatral com muita pele à vista, em gestos expressivos e exploratórios do corpo no espaço, seduz. Percebe-se que Catto está num mundo seu, como quando repete as palavras “pela estrada / pela estrada/ pela estrada”, traçando uma diagonal em palco, de olhar fixo no horizonte.

Massive Attack / Fotografia de Sofia Rodrigues – CCA

A certa altura, durante o concerto, alguém no público se aproxima de mim e pergunta-me “é um homem, não é?”. Respondo com o pouco que sabia: “Acho que é uma pessoa não-binária” [Filipe Catto é uma artista trans e não binária]. “O que é isso?”, responde-me aquela mulher, com ar meio desconfiado, com algumas pitadas de eventual ironia (ou genuína curiosidade, impossível aferir). A música tem sido, historicamente, um território em que as diversas minorias sociais (mas também essa esmagadora maioria silenciada que foram as mulheres ao longo de séculos ou milénios da história da humanidade) encontram um palco para poderem ser vistas e ouvidas. A performance de Catto torna-se também assim, para além de portadora de um propósito artístico inspirador e brilhante, mais uma pegada no trilho da visibilidade e da aceitação de quem é só, afinal de contas, e como deveríamos ser cada um de nós, “amor da cabeça aos pés”, nas palavras de Gal, também ali cantadas.

Seguiu-se, no mesmo palco, Vagabon, acompanhada de um músico multi-instrumentista que brilhou particularmente nas interpretações texturadas do seu saxofone, a abrir o concerto e num interlúdio a meio caminho daquela viagem. Assim como texturados foram todos os arranjos da artista originária dos Camarões, actualmente residente em Nova Iorque. Durante alguns meses a cidade em que morou foi Lisboa, como partilhou com o público, agradecida pela experiência de no início de 2024 ter tido oportunidade de realizar uma residência artística com o apoio da ZDB. “I love this city”, contou-nos, naquele que foi o seu primeiro concerto de sempre em Lisboa. Foi pena ter tido pouco público – àquela hora tocavam os Gossip no Palco San Miguel – porque o espectáculo que partilharam poderia ter beneficiado de uma pista de dança com um pouco mais de densidade por metro quadrado.

Vagabon / Fotografia de Sofia Rodrigues – CCA

Por ignorância, julgávamos que Vagabon estava ainda a trabalhar no terreno do indie rock com que iniciou a sua carreira, mas a sua incursão sónica tem derivado numa linguagem mais electrónica e alt-pop. Se alguns dos seus temas conquistam pelas suas melodias ou pelos timbres e texturas dos seus sintetizadores (“Autobahn” será um destaque da tarde, bem como “Can I Talk My Shit?” e “Lexicon”), talvez nem todas as canções soassem particularmente inspiradas ou, pelo menos, suficientemente interessantes para nos emocionar. Para além disso, pareceu-nos que eram excessivamente dependentes de elementos pré-gravados, o que não terá resultado totalmente bem com o formato do concerto e o contexto em que foram apresentados, resultando num concerto algo estático.

Dali seguimos para o Palco MEO, o principal do festival. Vagabon também seguiu connosco, disponível para dançar muito, como partilhou com o público. Chegava a hora de Massive Attack, um dos dois cabeças-de-cartaz da noite (num co-headlining que terá deixado o público algo dividido e confuso, mas que acabou por resultar estranhamente bem na prática, com duas grandes plateias a assistir a concertos de estilos tão diferentes). A banda britânica dispensa apresentações. Ainda de dia, inicia um espectáculo que se percebe denso desde os primeiros minutos. A música dos Massive Attack não é fácil de definir, porque se escreve a várias linguagens: o que elas têm sempre em comum é uma exploração devota das frequências baixas, como corações pulsantes ou drones que atravessam o tempo, providenciando chão para a complexidade de contributos de toda a banda (uma dupla de bateristas é sempre um bom atributo em qualquer concerto); mas também dos quase silêncios, como os presentes na icónica “Teardrop”, interstícios rítmicos quando os sintetizadores se calam para ganhar balanço e respirar. Há uma magia que é capaz de se ouvir quando as suspensões e os intervalos lhe reservam espaço.

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O concerto dos Massive Attack foi um momento cerimonioso, algo filosófico, mas acima de tudo extremamente político. A banda traz uma mensagem que, quase literalmente, se sobrepõe à música, remetendo esta última (por vezes) para uma posição de banda-sonora do envolvente espectáculo visual e simbólico que querem apresentar. Para a banda, cada concerto é uma oportunidade de intervir no espaço das ideias, que deve ser aproveitada. Os vídeos no fundo de palco sucedem-se: a destruição em Gaza e na Ucrânia, números e estatísticas das consequências e do exercício da guerra, uma lista interminável de hashtags ligadas a teorias da conspiração, mas também landmarks da cultura visual de um mundo globalizado. É um manifesto anti-fascista, cuja cadência lenta e densa da música dos Massive Attack lhe confere uma certa sensação negra, pessimista. É difícil, em certos momentos, acreditarmos que será possível construir algum caminho luminoso a partir do momento no tempo em que vivemos. Na criação dessa atmosfera, os Massive Attack são mais que eficazes. No apelo à intervenção política, também: os apelos ao fim do genocídio no Palestina repetem-se ao longo da noite.

No desfile de vocalistas convidados do concerto (passaram por ali Young Fathers, Horace Andy e  Deborah Miller) destaca-se a voz absolutamente inconfundível (e não só a voz – a presença, também) de Elizabeth Fraser, vocalista dos Cocteau Twins. Fraser interpreta quatro temas espalhados ao longo do serão, mas permitam-nos destacar o momento mais emotivo da noite para estes ouvidos: um cover de “Song to the Siren” (originalmente de Tim Buckley) com um acompanhamento minimalista de guitarra eléctrica, conquista pela sua beleza. Este é o mapa para se sair da teia confusa e distópica que os Massive Attack ilustram na sua electrónica tribal, nas incursões imersivas de um groove escurecido. Mais haveria para dizer sobre a eficácia deste concerto, que termina num epílogo que compila o extenso catálogo visual apresentado ao longo da noite, numa voragem frenética, que cose o início e o fim do concerto. É assim nos espectáculos que apresentam tanto sumo e tantas possibilidades.

Ana Lua Caiano / Fotografia de Sofia Rodrigues – CCA

Aquele acabou por ser o primeiro de três concertos seguidos que vimos encabeçados por artistas britânicos. O segundo foi o do rapper londrino Loyle Carner, no Palco San Miguel. Não esperávamos – e o rapper também não (afirmou-se surpreendido várias vezes ao longo da noite) – um público tão composto. E tão… feliz! Foi o concerto em que vimos mais sorrisos à nossa volta. Não apenas boa disposição, ou diversão; falamos de sorrisos rasgados de uma felicidade envolvida, viva, serena, fundada na música. Olhos rasgados, carinho pelo artista; que por sua vez devolvia carinho na direcção do público. O hip hop de Carner funda-se numa musicalidade jazzística, fazendo-se acompanhar de uma banda ao vivo em que cada membro tem a oportunidade de brilhar individualmente ao longo da noite (destaque para a baixista Marla Kether, que nos deixou boquiabertos em diversos temas do concerto). Mas a magia do espectáculo vive também muito, é claro, da expressividade de Carner – não só na forma fluída como faz deslizar as palavras, mas também na expressão corporal com que as interpreta, estando num estado de flow transparente que deixa o corpo falar por si.

Loyle anuncia que a próxima canção é a sua preferida. Trata-se de “Still”. No final da sua interpretação, faz questão de explicar o que significa para si: é sobre sentir-se ansiedade, medo, inseguranças. E sobre a validade de todas essas emoções. “Fuck that toxic masculinity shit!”, exclama, numa plateia em que também figurava o filho, a quem dedica um outro tema. Essa mensagem torna-se talvez o código que permite interpretar o hip hop vulnerável e emocional de Carner, a canção dedicada à sua avó, o seu sorriso e maneira de ser generosa. Encantado com Portugal, onde passou a última semana com a família, compõe um espectáculo acolhedor, repleto de beleza e espaços frágeis. No final, as boas ondas e energias não fecham os olhos às causas: exclama ainda “Free Palestine!” antes de abandonar o palco.

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Sentimo-nos algo “à porta” no início do concerto de Sam Smith. Na sequência das primeiras canções, o cantor britânico trouxe de rajada um misto de baladas (“Stay With Me”, “I’m Not the Only One”, “Tood Good at Goodbyes”) e canções pop de andamento médio (“Like I Can”, “How do You Sleep”) que reconhecemos instantaneamente sem que alguma vez nos tenham alguma vez emocionado: juntamo-nos às vozes à nossa volta porque lhes conhecemos a melodia, presentes em todo o lado no espaço público, consequência desse primado por vezes excessivamente imperialista de uma pop sem grande caixa-de-ressonância. Mas a segunda metade do concerto de Sam Smith acaba por nos surpreender. À medida que troca continuamente de roupa (terão sido seis ou sete os conjuntos que Smith vestiu ao longo da noite, incluindo os que não vestiu quando acabou por ficar de tronco nu já perto do final do espectáculo), o cantor traz um concerto cada vez mais fluído, mais fundado no álbum que funda esta sua digressão – “Gloria”.

No terreno de uma dance-pop mais ousada, e já acompanhado de dançarinos e dançarinas em palco, o som de Sam Smith torna-se mais envolvente. É um som mais contemporâneo, menos datado, num formato desconstruído que lhe serve bem. Não estando próximo do melhor que o género tem vindo a ver nascer, a música de Smith deixa-se ainda assim inspirar – e bem – por esse espírito do tempo. Não podemos dizer que o estilo da discografia de Smith ressoe connosco – era bonito ver, nos ecrãs gigantes, os rostos de quem perto da frente se emocionava com a música do artista – mas deixámos de nos sentir “à porta”. Visual e musicalmente, o espectáculo chega a terrenos mais interessantes e estimulantes, que fazem com que mesmo alguns dos corpos mais hirtos e resistentes à nossa volta progressivamente se deixem balançar. O concerto termina com “Unholy” (com a voz pré-gravada de Kim Petras a fazer-se presente), como statement distorcido e mesmo destrutivo de um pop mais ousado e progressivo, que ainda não tínhamos ouvido toda a noite. Teaser para um possível próximo capítulo na carreira do músico?

Fotografia de Sofia Rodrigues – CCA

Vamos terminar a noite ao concerto surpresa de Filipe Sambado, adicionada ao cartaz do Kalorama à última da hora depois do cancelamento de Fever Ray por motivos de saúde. No Palco Lisboa, e enfrentando de frente o sound bleed do electrizante dj set de Peggy Gou no Palco San Miguel, a artista portuguesa apresentou a sua fervilhante art pop criativa, que tem vindo a compor o bouquet do novo underground português. Com arranjos ora distorcidos ora calmos e minimalistas, e interpretando temas de vários pontos da sua carreira, Sambado convocou uma pequena mas dedicada plateia de algumas centenas de pessoas. O nosso carinho por “Caderninho” leva-nos a destacar esse tema, quase a abrir o concerto. Mas houve também oportunidade para momentos fora da caixa como o do cover de “Thank You, Next” (de Ariana Grande), com direito a screamo. Os agradecimentos tímidos de Sambado contrastam com a expansividade da sua música tão colorida.

Para nós, o primeiro dia do Kalorama começou e terminou naquele palco ermo, no cimo do parque, ao comando de Filipes a cantar em língua portuguesa, abrindo os horizontes sónicos (e não só). Duas pessoas não-binárias a balizar um dia que se compôs de múltiplas mensagens ligadas à liberdade, à importância de se lutar por quem somos e de o afirmar em voz alta – “I really wanted to be me”, dizia o sample várias vezes utilizado pelos Massive Attack ao longo do seu concerto. Hoje será a vez de LCD Soundsystem encabeçar o Palco MEO, numa noite que contará ainda com a presença dos Jungle, da icónica tour conjunta dos Death Cab for Cutie e dos The Postal Service, e com a auspiciosa estreia em Portugal dos English Teacher. Espera-se com alguma expectativa que o público não tenha de demorar tanto tempo (várias horas, segundo os relatos) para conseguir entrar no recinto, facto que motivou muitas críticas nas redes sociais por parte do público.

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